Autor Data 5 de Novembro de 2017 Secção Policiário [1370] Competição Campeonato Nacional e Taça de
Portugal – 2017 Prova nº 10 (Parte I) Publicação Público |
O ÚLTIMO BEIJO? M. Constantino Noite
gélida e ventosa – que o crime desconhece meteorologia. O alarme deu-se às
22.34 minutos. Dezassete minutos após, o piquete estava junto aos carros patrulha.
Dum deles saiu o médico legista – caso raro de perfeita coordenação! O agente
apontou o 1º andar. “Luz & Luz”, comerciantes, propriedade do irmão mais
novo, Lúcio, do filho Dário e de Pedro, filho do falecido luz. Lúcio, vítima
recente de atropelamento e fuga, considerada tentativa de homicídio, dependia
de uma bengala de carvalho argolada. Prejuízos e roubos na firma abreviavam o
regresso à gerência. Constam sérias zangas com Dário, acusado de “não ser seu
filho”, “falta de visão negocial”, “só é bom na raquete e com as duas mãos”,
factos que favoreciam o sobrinho! À
porta fechada do 1º andar, um outro agente aguardava. Pedro, que dera o
alarme, interrompeu o passei nervoso, abafado pelo comprido cachecol, bradou:
“Estão mortos! Mataram-se um ao outro e...” Interrompi. Pedi ao agente que o
levasse para outra sala. Trocadas luvas pelas de látex, entrei seguido do
legista e do meu parceiro Rui. Dois homens jaziam estendidos no soalho.
Lúcio, de costas, fora atingido em pleno peito com metade de uma tesoura de
cerca de 25 centímetros. O sangue escuro coagulara na camisa e numa mancha no
chão. Na lividez da face direita sobressaía o batom vermelho de uns lábios:
um último beijo? Dário, de bruços, na frente, braços estendidos, mão direita
enluvada, uma ferida na testa. Entre ambos, com a ponta de apoio perto da mão
de Lúcio, a pesada bengala. Tirámos fotos, enquanto o legista cortava a
camisa e expunha a ferida. Depois de extrair a arma, declarou com
competência: “Espuma e sangue nos cantos da oca, a lâmina resvalou entre as
costelas, de certeza perfurou o coração – fatal!” Aproximou-se de Dário e
gritou: “Uma ambulância! Urgente ou perdemo-lo!” Dia de milagres, dir-se-ia. Ao removerem o ferido caiu-lhe da mão
esquerda um molho de chaves, entre as quais a da porta, unidas por uma chave
de prata onde se lia “Dário S. Luz, Doador universal”. Cliché mental: Lúcio,
também ele doador, “um dos puros”, fazia notar que na raça branca o seu tipo
de sangue é apenas de 5%, convenceu Dário a ser um deles. Aí este conheceu a
namorada, Ema, agora noiva, ou melhor ex-noiva da vítima viúvo, elegante,
rico. Razão das zangas? Provável. Debrucei-me sobre o morto. Notei que a
marca do beijo estava ao contrário, isto é, como se fosse beijado de cima
para baixo, facto que contraria a lógica. Dos bolsos retirei uma ponta de uma
folha de contas, que deduzi fora arrancada à força, mas não encontrei a parte
restante. Fixei o armário junto à entrada, de portas sólidas escancaradas e o
conteúdo empilhado no chão: folhas de clientes numeradas, com algumas faltas.
Rui informou que os móveis, secretária, telefone estavam limpos de digitais e
não sabia como foram limpos, pois as toalhas e panos de limpeza não tinham
vestígios de uso. O computador fora violado. Sugeri à directoria
o envio de peritos informáticos e de contabilidade. A bengala e a arma
seguiram para o laboratório. Subitamente a janela da esquerda abriu-se. Fui
fechá-la, mas estaquei: um pingo de sangue oblongo, recente, jazia entre o
corpo e a janela, distante de ambos, vinha desafiar-me o raciocínio.
Indiquei-o a Rui para assinalar e enviar para análise. Fechei a janela depois
de olhar a viela ventosa. A sala voltou à amena temperatura anterior. O corpo
foi enviado para autópsia. Selei a porta e fui ao encontro de Pedro que tremia.
O meu parceiro voltou: com a lanterna A.L.S. de raios ultravioletas,
percorreu o corpo do rapaz, concluindo: “sem vestígios incriminatórios”.
Lembrei-me para providenciar as buscas na roupa de Dário e voltei-me para
Pedro. Relatou que o tio marcara uma reunião para as 22h mas, por
dificuldades de estacionamento chegou minutos depois das 22.30h. Viu os
sócios caídos, depreendendo imediatamente que se agrediram e mataram um ao
outro. Não perdeu tempo, ligou ao 112 e correu para baixo. “Não, não mexi em nada”
… “o polícia nem chegou a entrar, da porta telefonou logo” … “sim, ele e o
primo utilizavam o computador”. Rui levou o rapaz para o carro a fim de
passar o depoimento a escrito. O polícia que havia confirmado a sua condução
no caso, falou com o colega e comunicou-me que no decorrer da ronda haviam
visto o carro de D. Ema parado à porta aberta do prédio do escritório,
sinalizado mas sem ninguém dentro. Eram 21,45h. Eis um elo de ligação muito a
propósito. Voltámos à PJ e solicitei a Rui para convocar Ema, para
depoimento. Abri o computador. Liguei ao Hospital cerca das 3.30h, chefe da
equipa médica de serviço, elucidou-me: “Fractura
sem lesão do cérebro, ruptura de uma veia temporal,
com derrame – teve sorte, o osso frontal diminuiu o impacto. Nada de interrogatórios,
não se lembra de nada … facto que pode ser físico ou psíquico… Há que
aguardar...” Voltei ao computador. Acordei
estremunhado com o telefone… “porra adormecera!” Era
o legista: “Certo o diagnóstico adiantado. Hora da morte 21.30/22.30. Segue relatório.”
Olhei o relógio: 10.35h. Em cima da mesa, um copo de café frio, dois jornais
do dia abordavam o caso; “Crime Passional?” “Parricídio?”. Um bilhete de Rui:
“Sonhos coloridos”; vou buscar a dama para depoimento. Fui a casa
retemperar-me com um banho e café. Pus hipóteses, eliminei conjecturas. Precisava de verificar algo para justificar
outro algo! Aproveitei o regresso ao serviço para passar na viela junto aos
escritório dos Luz. Percorri-a, o vento deixara bocados de papel de jornal,
mas nada de interesse. Na
PJ, sobre a secretária encontrei um fax do
laboratório: “exame da gota de sangue com o da arma/esta sem impressões
digitais/são exclusivamente da vítima as da bengala em cujo extremo anterior
da argola detectamos um pouco de pele do frontal,
no interior e início da curvatura da bengala revelou quatro cabelos de 0,5
cm/ confirmamos em relatório próprio”; um memorando de serviço de Rui:
“pesquisas vestes de Dário e Ema, negativos; junto depoimento desta última”.
Do depoimento extraí: “esperava por Lúcio à saída do trabalho e foram jantar
após o que ele dormitara numa poltrona enquanto refazia a maquilhagem, depois
levou-o ao escritório. Não saiu do carro, lembra-se de se ter escondido
debaixo do volante quando uns faróis nos máximos se aproximaram devagar. Às
22h estava na associação de voluntários.” Voltara
à estaca zero. Ou não? Esperem, os acontecimentos começaram a desenhar-se. Quando
o director me convocou para uma conferência às
15.30h, tinha “o dedo no gatilho para disparar certeiro” com argumentos
justificativos. E
vós, leitores? |
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© DANIEL FALCÃO |
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