Autor Data 1 de Abril de 2008 Secção Competição Problema nº 8 Publicação O Almeirinense |
SORTE RIMA COM MORTE M. Constantino Medíocre
advogado obcecado pela “roleta”, Vaz hospedava-se no Hotel Heldo I, três
vezes por mês, para jogar… se é que, por motivos óbvios, não partia no
primeiro… Naquela noite, entrou febril no Casino, atirou uma ficha de €100…
viu a bolinha saltitar na roda, parar: ganhou! Sem forças deixou que as
fichas se acumulassem, sempre a ganhar. Um saco de plástico veio parar-lhe às
mãos. Despertou? Recolheu a colheita, trocou-a por dinheiro sólido, resistindo
ao crédito para o dia seguinte. Queria ser rico, um só dia que fosse! Quase
meio milhão! Pediu dois vigilantes para o acompanharem ao hotel. Levantou a
chave na recepção, subiu com os dois homens, abriu
a porta do quarto. Heldo, que na “sala de repouso” tirava um livro da última
prateleira, ouviu vozes, espreitou e viu o hóspede tirar duas notas de €500
para cada um dos acompanhantes, sorrir, entrar e fechar a porta. Heldo desceu
com os homens, que conhecia do Casino e soube do sucesso. Deitou-se,
satisfeito. Vaz acendeu as luzes, estendeu as notas, como uma criança,
contou-as e recontou-as, saudou as luzes do Casino através do vidro da
janela, colocou o saco na mesa de cabeceira e,
exausto, atirou-se para a cama, vestido, feliz, sorrindo para ninguém…
Adormeceu. Sonhou. Uma luz sobre os olhos que tentou proteger, um véu rubro,
pesado, a transformar-se em negro… no subconsciente a apagar-se, uma última
reflexão: “sorte, rima com morte”! Oito
e meia da manhã. Amália, a servente dos quartos, saiu do quarto 10 e entrou
no 9 com uma braçada de toalhas limpas para, como de costume, as trocar na
casa de banho. Momentos depois, gritos: encontrou Vaz, morto! A irmã de
Heldo, que vinha do quarto 4, seu e dos velhos pais, chamou o irmão e este a
GNR; de seguida, fez um telefonema extra. O Director
da Judiciária não era homem de “pedidos”, mas Heldo era seu irmão. Cerca de
duas horas depois, o Inspector Cabral, mais
conhecido por Inspector Aranha, pela facilidade
impressionante como se movimentava nas teias do crime (segundo ele próprio um
vulgar Zé dos Anzóis), chega junto de Heldo e do Tenente, que aguardavam.
Este último fez um breve resumo do caso, tendo procedido às primeiras
diligências com o seu pessoal: impressões digitais, vestígios, exame legal,
“sem mexer no corpo”. “Certo, certo, só a hora da morte… Deixámos tudo como
encontrámos.” Parecia aliviado por deixar o assunto “em boas mãos”. Cabral,
decidido, subiu ao 2º andar e, guiado por Heldo, que lhe narrava a
ocorrência, entrou no quarto, utilizando a chave que o Tenente lhe entregara.
As
luzes estavam acesas. Reparou nas toalhas lavadas, que não chegaram a ser
utilizadas, na mesa junto aos pés da cama, colocada no sentido do seu
comprimento, com a cabeceira junto à parede do banheiro, na qual jazia a vítima
com o rosto esfacelado. Sangue seco espalhara-se no peito e lençóis; a mão
esquerda junto ao rosto; via-se o relógio de pulso destruído e os ponteiros,
encravados no mostrador, marcavam 2h45. A arma do crime, um cinzeiro de
pedra, pesado e rugoso, estava no chão, assinalado com um círculo a giz. A
janela de vidro fechada com ferrolho em baixo, persianas meio descidas.
Abriu-a e passou para o amplo terraço, comum com o quarto 11 mas separado por
um muro de azulejos de 2,30 metros, impossível de transpor sem escada, aliás
sem sinais de escalada. “Todos os quartos do nascente, nos
2º e 3º andares, têm esta disposição, para banho solar, mas em nenhum
andar coincidem” – informou Heldo, que prometeu uma planta. Fixando
pormenores, abriu o guarda-roupa com um fato tipo smoking no cabide, calça e
casaco, sapatos pretos, meias, cuecas, um lenço na mala de viagem aberta. Do
dinheiro, nem sombra! Na saída, entrou na casa de banho, salpicou de água
oxigenada a pia – sem resultado, se bem que quem matara tivesse de sujar-se
de sangue! Foi ouvir Amália ao quarto de Marta, irmã de Heldo.
Surpreendeu-se. Sem maquilhagem, olhos vermelhos de choro, morena, esbelta,
blusa branca e saia preta, pernas bem torneadas terminando nuns sapatos
“Gucci” de salto alto… era uma linda mulher! Sondou-a e deixou-a ir para
casa, a pedido de Heldo. Para este, Amália era insuspeita. Cabral indagou se
suspeitava de alguém. O visado encolheu os ombros, hesitou, depois lembrou
quatro hóspedes gémeos que sempre que por ali passavam havia roubos nas
redondezas. Desceram. O recepcionista, irmão e
sócio de Heldo, estivera toda a noite acordado; ele e o porteiro mantinham um
eterno torneio de xadrez, só interrompido pela chegada de hóspedes. Acredita
que o culpado habita o 2º, pois o 1º é a sala de jantar, os restantes estão
desabitados nesta época. Ninguém pode subir, nem subiu, sem passar pela recepção. Amália entrou por uma porta lateral do r/c às
8h00, passou para levar a chave antes de subir. Não distingue os gémeos (nos BI’s as fotos e digitais são iguais, como eles). Regista
os nomes que lhe dizem: Albino, Betino, Celino e Delfino. Sabe que o mais
velho (o que nasceu primeiro) tem um sinal no polegar direito, que os outros
lhe obedecem sem querela. Um foi actor teatral,
conhecido pelo “sempre actor”. Os quartos? Números
11, 12, 15, o que vem com Amélia ocupa o 8. Foi buscar um caderno onde se
apontam o tempo das jogadas (para desempate) e registo de interrupções. Vaz
entrou à 1h35; minutos depois, foram levantadas as chaves do 11 e do 15;
Amélia e o parceiro entraram às 2h10; o gordo do 5, bêbado como sempre, às
3h20, e o do 12 às 3h35. O gay rico do 7 e a
dançarina do Casino, do 3, não entraram. Os gémeos saíram às 7h30 para
Coimbra, vêm almoçar. Cabral recebeu a planta do prédio e a chave mestra que
estava em poder de Amália. Subiram.
Começou pelo 8; nada de interesse, excepto as duas
camas unidas para o casal; seguiu-se o 11, aparentemente em ordem. Notou um
cheiro a queimado, não de tabaco – algo fora queimado. No balde metálico dos
papéis deparou com um resíduo de cinza inidentificável – papéis ou tecido, o
qual recolheu para um envelope próprio. Ia a sair, parou, tirou da pequena
mala a tiracolo um tubo, derramando o conteúdo no puxador da porta de ambos
os lados, comentando: “Este, pelo menos, vamos saber quem é!” No 12, um
apartamento de luxo, nada existia de interesse. No 15, idem, apenas uma
revista “Art”, com folhas dobradas em algumas
páginas, e foi tudo. Heldo indicou que os 13 e 2 estavam vagos, o 10 era
ocupado por um casal de idosos que não quiseram ir para um lar, o 6 era do
Notário e esposa, presentemente em férias. O 1 servia provisoriamente de
roupeiro. Dirigiram-se à “sala de repouso”, na sequência dos quartos 12 e 15,
quando o telemóvel de Heldo anunciou a chegada dos gémeos que bebiam um
aperitivo por conta da casa. Sabiam da ocorrência pois toparam com Amália (um
imprevisto contrariador para Cabral). Rapidamente, decidiu: Heldo dir-lhe-ia
que o Inspector esperava na sala anexa dentro de 20
minutos. Entrou! Uma prateleira frontal cheia de livros até ao tecto fê-lo passar a mão suavemente sobre as lombadas,
mesas com tabuleiros de damas e xadrez, cadeiras e sofás individuais.
Escolheu uma mesa rectangular, colocou duas
cadeiras no lado direito, uma à esquerda e duas nos topos, ocupando uma
delas. Sensivelmente à hora indicada, entraram quatro clones em fila indiana:
mesmo rosto, mesmo físico, barba negra (razão de não encontrar objectos de higiene), fatos azuis, gravatas, excepto um, que usava laço preto… Antes que tivesse tempo
de ordenar a colocação, o primeiro da fila sentara-se na sua frente, o do
laço à esquerda, e os outros nas cadeiras restantes. Olhou-os; ninguém
pronunciava palavra. Notou que todos tinham um sinal no polegar, o do laço
ostentava os vestígios da armadilha no puxador. Começou por este mas
dirigindo-se a todos: “Sou da Judiciária, não tenho uma acusação, gostaria
apenas de ouvir-vos… houve um crime e desapareceu dinheiro…” Interrompendo,
o que estava à sua frente respondeu, gesticulando, teatralmente: “Que diabo!
Sempre o dinheiro! Parece que não sabem falar noutra coisa se não em
dinheiro, dinheiro! Só sabem dizer dinheiro! Só conhecem a palavra dinheiro…”
Cabral fê-lo calar com um gesto. Voltou ao primeiro que respondeu, com
desembaraço: “Sou o caga-no-ninho da família, trabalhei no circo (abriu a
camisa para mostrar uma tatuagem “Star Circo”), falhei. Sou jogador, faço
trapaça, há que viver. Matar? Desde que seja num aperto…” O da cadeira à minha direita, observou: “Sou perito de uma Companhia de
Seguros, pintura clássica, arte sacra e régia. Poderia facilmente roubar um
Rubens ou um Renoir que valeria milhões, mas para quê, se não poderia
vendê-lo ou expô-lo. Sou um admirador de D. José, o reconstrutor de Lisboa.
Prefiro pensar em ter na cabeça, por um só dia, a coroa que esse Rei usava…
que satisfação!” Apontou para o segundo à direita, mais afastado. Este
engoliu em seco, mas com altivez referiu: “Fui professor de português num
Liceu da Capital! Expulso. Ao meu ver, tem um
problema sério, Inspector.” Voltou-se para o irmão:
“Tu, irmão, és um dos que desejas uma coroa… eu, uma mulher! Tenho que ir
fazer um telefonema para Amélia… com licença!” Levantaram-se e saíram. Cabral
ficou sentado, pensativo. Levantou-se e saiu, avisando na recepção
que almoçava fora e assim fez, calmamente. Andou em volta do Hotel, foi até à
praia… a cada passo encaixava uma pedra na muralha do pensamento. Quando
olhou o relógio, eram 17h30. Amália, renovada, estava no bar ao lado da recepção a tomar um martini:
“Então, Amália, já descansou?” A moça sorriu, não respondeu. Ia insistir,
quando uma voz atrás de si pronunciou baixo: “Deixa a moça em paz, amigo!”
Voltou-se. Não havia ninguém. Muito afastado, apenas o empregado, que lavava
copos. Ia interpelar a moça, quando esta lhe entregou um papel que acabara de
rabiscar… “Sou surda-muda, desculpe.” Ficou atónito. A moça já subira.
Esperou pelo elevador e foi refugiar-se na “sala de repouso”. Com toda a
discrição, como lhe recomendaram, entregou ao Tenente as suas conclusões.
Heldo entrou e subiu a pequena escada de alumínio, para recolocar o livro que
tirara na véspera; ao descer, reparou no investigador e dirigiu-se-lhe:
“Então?” “Tudo resolvido”, respondeu o Inspector. E
os leitores? Será que decidiram da colocação de cada um dos gémeos nos
quartos, do seu carácter, por quem e como foi praticado o crime? |
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© DANIEL FALCÃO |
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