Autor

M. Constantino

 

Data

1 de Abril de 2008

 

Secção

Mundo dos Passatempos [51]

 

Competição

Torneio Domingos Cabral

Problema nº 8

 

Publicação

O Almeirinense

 

 

SORTE RIMA COM MORTE

M. Constantino

 

Medíocre advogado obcecado pela “roleta”, Vaz hospedava-se no Hotel Heldo I, três vezes por mês, para jogar… se é que, por motivos óbvios, não partia no primeiro… Naquela noite, entrou febril no Casino, atirou uma ficha de €100… viu a bolinha saltitar na roda, parar: ganhou! Sem forças deixou que as fichas se acumulassem, sempre a ganhar. Um saco de plástico veio parar-lhe às mãos. Despertou? Recolheu a colheita, trocou-a por dinheiro sólido, resistindo ao crédito para o dia seguinte. Queria ser rico, um só dia que fosse! Quase meio milhão! Pediu dois vigilantes para o acompanharem ao hotel. Levantou a chave na recepção, subiu com os dois homens, abriu a porta do quarto. Heldo, que na “sala de repouso” tirava um livro da última prateleira, ouviu vozes, espreitou e viu o hóspede tirar duas notas de €500 para cada um dos acompanhantes, sorrir, entrar e fechar a porta. Heldo desceu com os homens, que conhecia do Casino e soube do sucesso. Deitou-se, satisfeito. Vaz acendeu as luzes, estendeu as notas, como uma criança, contou-as e recontou-as, saudou as luzes do Casino através do vidro da janela, colocou o saco na mesa de cabeceira e, exausto, atirou-se para a cama, vestido, feliz, sorrindo para ninguém… Adormeceu. Sonhou. Uma luz sobre os olhos que tentou proteger, um véu rubro, pesado, a transformar-se em negro… no subconsciente a apagar-se, uma última reflexão: “sorte, rima com morte”!

Oito e meia da manhã. Amália, a servente dos quartos, saiu do quarto 10 e entrou no 9 com uma braçada de toalhas limpas para, como de costume, as trocar na casa de banho. Momentos depois, gritos: encontrou Vaz, morto! A irmã de Heldo, que vinha do quarto 4, seu e dos velhos pais, chamou o irmão e este a GNR; de seguida, fez um telefonema extra. O Director da Judiciária não era homem de “pedidos”, mas Heldo era seu irmão. Cerca de duas horas depois, o Inspector Cabral, mais conhecido por Inspector Aranha, pela facilidade impressionante como se movimentava nas teias do crime (segundo ele próprio um vulgar Zé dos Anzóis), chega junto de Heldo e do Tenente, que aguardavam. Este último fez um breve resumo do caso, tendo procedido às primeiras diligências com o seu pessoal: impressões digitais, vestígios, exame legal, “sem mexer no corpo”. “Certo, certo, só a hora da morte… Deixámos tudo como encontrámos.” Parecia aliviado por deixar o assunto “em boas mãos”. Cabral, decidido, subiu ao 2º andar e, guiado por Heldo, que lhe narrava a ocorrência, entrou no quarto, utilizando a chave que o Tenente lhe entregara.

As luzes estavam acesas. Reparou nas toalhas lavadas, que não chegaram a ser utilizadas, na mesa junto aos pés da cama, colocada no sentido do seu comprimento, com a cabeceira junto à parede do banheiro, na qual jazia a vítima com o rosto esfacelado. Sangue seco espalhara-se no peito e lençóis; a mão esquerda junto ao rosto; via-se o relógio de pulso destruído e os ponteiros, encravados no mostrador, marcavam 2h45. A arma do crime, um cinzeiro de pedra, pesado e rugoso, estava no chão, assinalado com um círculo a giz. A janela de vidro fechada com ferrolho em baixo, persianas meio descidas. Abriu-a e passou para o amplo terraço, comum com o quarto 11 mas separado por um muro de azulejos de 2,30 metros, impossível de transpor sem escada, aliás sem sinais de escalada. “Todos os quartos do nascente, nos 2º e 3º andares, têm esta disposição, para banho solar, mas em nenhum andar coincidem” – informou Heldo, que prometeu uma planta.

Fixando pormenores, abriu o guarda-roupa com um fato tipo smoking no cabide, calça e casaco, sapatos pretos, meias, cuecas, um lenço na mala de viagem aberta. Do dinheiro, nem sombra! Na saída, entrou na casa de banho, salpicou de água oxigenada a pia – sem resultado, se bem que quem matara tivesse de sujar-se de sangue! Foi ouvir Amália ao quarto de Marta, irmã de Heldo. Surpreendeu-se. Sem maquilhagem, olhos vermelhos de choro, morena, esbelta, blusa branca e saia preta, pernas bem torneadas terminando nuns sapatos “Gucci” de salto alto… era uma linda mulher! Sondou-a e deixou-a ir para casa, a pedido de Heldo. Para este, Amália era insuspeita. Cabral indagou se suspeitava de alguém. O visado encolheu os ombros, hesitou, depois lembrou quatro hóspedes gémeos que sempre que por ali passavam havia roubos nas redondezas. Desceram. O recepcionista, irmão e sócio de Heldo, estivera toda a noite acordado; ele e o porteiro mantinham um eterno torneio de xadrez, só interrompido pela chegada de hóspedes. Acredita que o culpado habita o 2º, pois o 1º é a sala de jantar, os restantes estão desabitados nesta época. Ninguém pode subir, nem subiu, sem passar pela recepção. Amália entrou por uma porta lateral do r/c às 8h00, passou para levar a chave antes de subir. Não distingue os gémeos (nos BI’s as fotos e digitais são iguais, como eles). Regista os nomes que lhe dizem: Albino, Betino, Celino e Delfino. Sabe que o mais velho (o que nasceu primeiro) tem um sinal no polegar direito, que os outros lhe obedecem sem querela. Um foi actor teatral, conhecido pelo “sempre actor”. Os quartos? Números 11, 12, 15, o que vem com Amélia ocupa o 8. Foi buscar um caderno onde se apontam o tempo das jogadas (para desempate) e registo de interrupções. Vaz entrou à 1h35; minutos depois, foram levantadas as chaves do 11 e do 15; Amélia e o parceiro entraram às 2h10; o gordo do 5, bêbado como sempre, às 3h20, e o do 12 às 3h35. O gay rico do 7 e a dançarina do Casino, do 3, não entraram. Os gémeos saíram às 7h30 para Coimbra, vêm almoçar. Cabral recebeu a planta do prédio e a chave mestra que estava em poder de Amália.

Subiram. Começou pelo 8; nada de interesse, excepto as duas camas unidas para o casal; seguiu-se o 11, aparentemente em ordem. Notou um cheiro a queimado, não de tabaco – algo fora queimado. No balde metálico dos papéis deparou com um resíduo de cinza inidentificável – papéis ou tecido, o qual recolheu para um envelope próprio. Ia a sair, parou, tirou da pequena mala a tiracolo um tubo, derramando o conteúdo no puxador da porta de ambos os lados, comentando: “Este, pelo menos, vamos saber quem é!” No 12, um apartamento de luxo, nada existia de interesse. No 15, idem, apenas uma revista “Art”, com folhas dobradas em algumas páginas, e foi tudo. Heldo indicou que os 13 e 2 estavam vagos, o 10 era ocupado por um casal de idosos que não quiseram ir para um lar, o 6 era do Notário e esposa, presentemente em férias. O 1 servia provisoriamente de roupeiro. Dirigiram-se à “sala de repouso”, na sequência dos quartos 12 e 15, quando o telemóvel de Heldo anunciou a chegada dos gémeos que bebiam um aperitivo por conta da casa. Sabiam da ocorrência pois toparam com Amália (um imprevisto contrariador para Cabral). Rapidamente, decidiu: Heldo dir-lhe-ia que o Inspector esperava na sala anexa dentro de 20 minutos. Entrou! Uma prateleira frontal cheia de livros até ao tecto fê-lo passar a mão suavemente sobre as lombadas, mesas com tabuleiros de damas e xadrez, cadeiras e sofás individuais. Escolheu uma mesa rectangular, colocou duas cadeiras no lado direito, uma à esquerda e duas nos topos, ocupando uma delas. Sensivelmente à hora indicada, entraram quatro clones em fila indiana: mesmo rosto, mesmo físico, barba negra (razão de não encontrar objectos de higiene), fatos azuis, gravatas, excepto um, que usava laço preto… Antes que tivesse tempo de ordenar a colocação, o primeiro da fila sentara-se na sua frente, o do laço à esquerda, e os outros nas cadeiras restantes. Olhou-os; ninguém pronunciava palavra. Notou que todos tinham um sinal no polegar, o do laço ostentava os vestígios da armadilha no puxador. Começou por este mas dirigindo-se a todos: “Sou da Judiciária, não tenho uma acusação, gostaria apenas de ouvir-vos… houve um crime e desapareceu dinheiro…”

Interrompendo, o que estava à sua frente respondeu, gesticulando, teatralmente: “Que diabo! Sempre o dinheiro! Parece que não sabem falar noutra coisa se não em dinheiro, dinheiro! Só sabem dizer dinheiro! Só conhecem a palavra dinheiro…” Cabral fê-lo calar com um gesto. Voltou ao primeiro que respondeu, com desembaraço: “Sou o caga-no-ninho da família, trabalhei no circo (abriu a camisa para mostrar uma tatuagem “Star Circo”), falhei. Sou jogador, faço trapaça, há que viver. Matar? Desde que seja num aperto…” O da cadeira à minha direita, observou: “Sou perito de uma Companhia de Seguros, pintura clássica, arte sacra e régia. Poderia facilmente roubar um Rubens ou um Renoir que valeria milhões, mas para quê, se não poderia vendê-lo ou expô-lo. Sou um admirador de D. José, o reconstrutor de Lisboa. Prefiro pensar em ter na cabeça, por um só dia, a coroa que esse Rei usava… que satisfação!” Apontou para o segundo à direita, mais afastado. Este engoliu em seco, mas com altivez referiu: “Fui professor de português num Liceu da Capital! Expulso. Ao meu ver, tem um problema sério, Inspector.” Voltou-se para o irmão: “Tu, irmão, és um dos que desejas uma coroa… eu, uma mulher! Tenho que ir fazer um telefonema para Amélia… com licença!” Levantaram-se e saíram.

Cabral ficou sentado, pensativo. Levantou-se e saiu, avisando na recepção que almoçava fora e assim fez, calmamente. Andou em volta do Hotel, foi até à praia… a cada passo encaixava uma pedra na muralha do pensamento. Quando olhou o relógio, eram 17h30. Amália, renovada, estava no bar ao lado da recepção a tomar um martini: “Então, Amália, já descansou?” A moça sorriu, não respondeu. Ia insistir, quando uma voz atrás de si pronunciou baixo: “Deixa a moça em paz, amigo!” Voltou-se. Não havia ninguém. Muito afastado, apenas o empregado, que lavava copos. Ia interpelar a moça, quando esta lhe entregou um papel que acabara de rabiscar… “Sou surda-muda, desculpe.” Ficou atónito. A moça já subira. Esperou pelo elevador e foi refugiar-se na “sala de repouso”. Com toda a discrição, como lhe recomendaram, entregou ao Tenente as suas conclusões. Heldo entrou e subiu a pequena escada de alumínio, para recolocar o livro que tirara na véspera; ao descer, reparou no investigador e dirigiu-se-lhe: “Então?” “Tudo resolvido”, respondeu o Inspector.

E os leitores? Será que decidiram da colocação de cada um dos gémeos nos quartos, do seu carácter, por quem e como foi praticado o crime?

 

SOLUÇÃO

© DANIEL FALCÃO