Autor

Mr. Ignotius

 

Data

12 de Outubro de 2008

 

Secção

Policiário [898]

 

Competição

Campeonato Nacional e Taça de Portugal – 2008/2009

Prova nº 1

 

Publicação

Público

 

 

UM CRIME NO OUTONO

Mr. Ignotius

 

Se há coisa que detesto é obrigarem a concentrar-me totalmente em situações nada agradáveis (como sempre acontece quando se investiga um homicídio), quando o que apetece é deixar-me absorver por toda a magestática beleza da natureza. Acresce que sou particularmente sensível a estas deambulações contemplativas quando um belo dia outonal nos convida a percorrer os jardins, atapetados de folhas de mil cores, em que o sol, coado por entre as ramagens, cria um ambiente de tonalidades ímpares, dignas da tela de qualquer mestre pintor.

Foi por isso que fiquei furioso quando, num dia assim, recebi uma chamada, convocando-me com urgência à cena de um crime, que acabava de chegar ao conhecimento de um meu amigo, inspector da Judiciária. Não fora o “bichinho” que sempre tive por mistérios e não trocaria a alameda do parque, por onde extasiado passeava, pelo táxi que me levaria à moradia onde o caso ocorrera.

É claro que ia de mau humor e, por isso, em vez da conversa que habitualmente tinha com o inspector, antes de me pôr a coscuvilhar tudo e a dar palpites, limitei-me a pedir-lhe que me mostrasse as notas que já tinha recolhido, de onde me ressaltou logo a particularidade dos nomes de todos os envolvidos começarem pela letra “B”.

Bártolo chamava-se a vítima. Era um professor/investigador de História, já aposentado, que granjeara fama internacional na leitura de códigos, cifras e outras formas de ocultar mensagens, que os respectivos autores consideravam importante só serem do conhecimento de alguns.

Bárbara era o nome da governanta, que trabalhava para a vítima há mais de 20 anos. Mulher possante e com ar laborioso, andava pelos 50 anos. Era a dona da casa desde a morte da patroa. Fora ela que descobrira o cadáver, cerca das 12 horas, e logo chamara a polícia, jurando que em nada mexera.

Basílio, sobrinho da vítima, tinha boa figura física e melhor aparência. Andaria pelos 35 anos, bem vividos à custa da fortuna herdada por morte dos pais. Presença assídua junto do jet-set, mantinha-se solteiro e, ultimamente, constava que atravessava uma fase difícil em resultado de maus investimentos que fizera.

Belmiro era, em tudo, a antítese do primo: fisicamente baixote, usava óculos de lentes fortíssimas, que lhe desfeavam o rosto. Modesto funcionário público vivia em permanentes dificuldades para sustentar a família. Desde a morte dos pais era o tio que muitas vezes o ajudava economicamente, pois possuía amplos recursos para o fazer.

Quanto à hora da morte estimava-se que ocorrera cerca do meio-dia, provocada por traumatismo craniano resultante de forte pancada, com objecto ainda não identificado, na têmpora direita, considerando o médico legista que a morte ocorrera mais de uma hora depois da agressão.

O crime acontecera no escritório, que estava impecavelmente limpo e arrumado. Era uma sala de rés-do-chão, recoberta de estantes com livros, com uma porta para o hall de entrada e uma janela para o exterior, junto da qual estava a secretária onde Bártolo tombara morto, como que adormecido sobre alguns papéis, ainda segurando a caneta.

O interrogatório preliminar pouco acrescentava: Bárbara, após servir o pequeno-almoço e com o patrão já no escritório, saíra cerca das dez e tal para fazer compras, regressando poucos minutos antes de ter chamado a polícia; Basílio indicou o nome de uma amiga com quem estivera a tomar café e a conversar, entre as dez e as doze, e Belmiro dissera ter estado a trabalhar desde as nove e trinta até à hora de saída para almoço. O inspector já mandara conferir os três álibis, aguardando os resultados das diligências.

A casa já fora passada a pente fino e não fora encontrada a arma do crime. No exterior, junto à janela do escritório, as folhas mortas sobre o pequeno canteiro tinham marcas de terem sido pisadas, sendo notória a força exercida pela biqueira dos sapatos. Na secretária, sob o cadáver, estava uma folha manuscrita, em letra algo trémula, com algumas frases, aparentando ser apontamentos recordatórios:

Os reis magos ofertaram mirra; Primeiro foi mulher de João Lourenço da Cunha; Consultar “Quadros da História de Portugal” e “A Inquisição” (que estava aberto, na secretária); A Santa era filha de D. Pedro III de Aragão; Casou com o Imperador Carlos V (Alemanha); Confirmar citações em “O Príncipe Perfeito” e “Os Filhos de D. João I”; Apenas três Papas escolheram este nome (393/1154).

Pedi ao meu amigo que inquirisse de Bárbara se a janela do escritório estava aberta ou fechada e, entretanto, fui dando uma vista de olhos pelas lombadas dos livros.

“Quando regressei estava fechada”, declarou. “Mas em dias assim o senhor doutor tinha-a sempre aberta Eu até estranhei quando, da rua, a vi assim.”

Pouco depois soube o resultado das diligências: ambos os sobrinhos e únicos parentes da vítima mentiram, pois não tinham justificação para o que haviam feito durante meia hora, do período definido pelo médico legista. Mais, o café distava cerca de cinco minutos da moradia e o emprego ficava a dez minutos.

Juntei estes elementos às notas que possuía, consultei um dos livros da biblioteca, escrevi mais alguns apontamentos e depois de alguma concentração declarei ao meu amigo já saber quem era o criminoso e como algumas coisas ocorreram.

É para elaborar estas conclusões que convido os nossos confrades.

 

SOLUÇÃO

© DANIEL FALCÃO