Autor

Mr. Jartur

 

Data

1958

 

Secção

Mistério [1]

 

Competição

Torneio Policiário "Pantera Negra"

1º Problema

 

Publicação

Colecção Pantera Negra [6]

 

 

A MORTE DO CAMPEÃO

Mr. Jartur

 

A competição aproximava-se do final. Os motores, no máximo da aceleração, faziam ume barulheira ensurdecedora, e os motociclistas conduziam quase deitados sobre os tanques de combustível, concentrando toda a atenção no manejo das motos.

Os seis émulos que comandavam a prova, pouco distanciados entre si, faziam prodígios de perícia e temeridade, numa luta sem quartel pela melhor posição.

Quando entraram na zona mais perigosa e deserta do circuito, Walter seguia à frente, ambicionando ser o primeiro a chegar à recta das tribunas. Era esse também o desejo dos motociclistas que o seguiam a poucos metros. Apareceu-lhes uma curva para a esquerda, a descer, e todos afrouxaram o andamento, erguendo-se um pouco sobre o selim, para ver melhor a pista e dar inclinação aos veículos.

As motos entraram na curva. Ao chegarem a meio, os condutores voltaram a abrir o gás, preparando-se para desfazer a curva e retomar a velocidade máxima.

Walter continuava no comando. Conduzia sabiamente, com uma segurança absoluta, mantendo sem esforço a escassa distância que o separava dos adversários. Sùbitamente, algo de estranho aconteceu. Engenho e homem, lançados a cerca de 160 quilómetros por hora, correm para a berma da pista e precipitam-se no profundo abismo, que se cavava na margem direita, onde terminava a faixa de rodagem.

Os outros motociclistas, atacados pela fúria da velocidade e pelo desejo de vencer, olhos postos na pista e nos comandos das suas viaturas, só pressentiram o desastre quando já estava consumado. Lançaram um rápido olhar à moto e deixaram-na para trás, sem ver que ela, rolando pela ribanceira, cuspiu o seu ocupante, que continuou a descida, a bater de pedra em pedra. Ao violento contacto com o fundo rochoso do precipício, o depósito de gasolina rebentou, despejou parte do conteúdo e incendiou-se. Poucos metros mais acima, o corpo do desportista jazia, inerte.

Quatro dos competidores que presenciaram o desastre tiveram uma expressão espontânea, misto de satisfação e dó. O outro abrandou a velocidade, reduziu ainda mais e parou, uma centena de metros adiante. Voltou a moto e aproximou-se do sítio onde o veículo do inglês abandonara a estrada. Não se chegou junto do rival tão tràgicamente retirado da prova, nem sequer desmontou da moto. Olhou para o corpo imóvel e concluiu que, com tantos ferimentos e tanto sangue vertido, era impossível que o homem ainda tivesse vida. Por isso, concedendo ao ex-adversário um último olhar de compaixão, Marcos Dias arrancou velozmente, numa tentativa diabólica de não ser ultrapassado pelos concorrentes que se aproximavam, ouvindo-se já o ruidoso bater dos motores.

Num aumento de velocidade progressiva, acompanhado pelo roncar dos escapes, Marcos Dias foi o quinto homem a transpor a linha de chegada, arrancando da multidão frenéticas aclamações, que coroaram a sua temeridade.

 

Na cabina destinada ao corredor português, o seu amigo Jartur esperava-o, congeminando algumas palavras de felicitações. Quando Marcos Dias chegou ali, conduzindo vagarosamente a sua «Norton», recebeu o abraço do colega e disse:

– Ajuda-me depressa a pôr o carro lá fora. Deu-se ali atrás um acidente e tenho a impressão de que aquilo não foi normal.

E, depois de passar um lenço pelas faces cheias de poeira e fumo, prosseguiu:

– Logo que cheguem os últimos, quero ir até lá para ver em que estado ficaram o corpo e a máquina.

Olhando a ambulância que aguardava o final da competição em frente às tribunas, no local destinado ao estacionamento dos carros de socorros, Jartur respondeu:

– Diabo de mania a tua! – Pigarreou de uma maneira estranhe e continuou com um sorriso significativo: – Depois de cinco horas de «equitação», respirando areia e gás, ainda te sentes com vontade de ir repetir pela

– Escusas de estar com réplicas – vociferou Marcos, cortando a fala ao amigo. – Se queres vir, vem! Se não queres vir, fica | Eu não deixarei de ir! E, quando voltar, por certo já não trarei este peso na consciência – terminou, em voz mais calma, passando pela testa a mão de novo enluvada.

– Ganhaste! – murmurou Jartur. – Quando sonhas com uma maldade, és capaz de revolver o mundo para encontrar o autor. Já agora, acompanho-te…

Entretanto, chegarem os últimos corredores.

A ambulância entrou na pista, voltou à direita e Marcos fez com que o seu «Mercedes» a seguisse de perto, não obstante a grande velocidade atingida. Pouco depois, os dois carros diminuíram de velocidade e o português fez estacionar o seu automóvel a pouca distância do outro, deixando entre eles apenas o espaço necessário para que a equipa de socorro pudesse sair com a maca.

Marcos a Jartur acompanharam os maqueiros na difícil descida e aproximaram-se do corpo ensanguentado. O capacete de protecção deixara-lhe a cabeça quase intacta, mas o resto do corpo parecia desfeito.

O cadáver, deitado de bruços, estava meio pendurado num enorme rochedo, pelo qual escorria ainda o líquido rubro e viscoso que lhe saía das veias. O fato de cabedal, negro, estava manchado e roto em diversos pontos. Um pouco abaixo da omoplata esquerda, via-se no cabedal um pequeno orifício circular, ao qual Marcos Dias dispensou especial atenção. Por ali, pouco sangue saíra, mas notava-se a roupa interior ensopada naquele humor ainda quente.

Da moto, só restavam os ferros, com a pintura completamente destroçada, e os metais mais débeis sinistramente retorcidos.

Com dificuldade, os homens da ambulância conseguiram transportar o cadáver até à pista, onde a maior parte dos motociclistas que participaram na prova se haviam juntado. A polícia conservava os populares à distância, permitindo apenas a aproximação dos concorrentes e do pessoal da organização.

Logo que conseguiu chegar à estrada, auxiliando os maqueiros, Marcos aproximou-se do director da corrida, que também se deslocara até ali, e afirmou:

– Tenho a dizer-lhe, senhor Montazel, que a corrida deste ano acaba de ser assinalada com um crime.

O homem, de aspecto desportivo, onde apenas contrastava a sua grande barriga, ficou estupefacto com as palavras daquele motociclista e tê-lo-ia mandado para o diabo, se não soubesse que se tratava de um jovem detective que já inúmeras vezes fizera triunfar a justiça.

– Mas… o desastre… como explicar!?...limitou-se a tartamudear, com a voz a querer extinguir-se.

Marcos olhou em redor e ciciou-lhe algumas palavras, fazendo sinal a um polícia para que se aproximasse. O agente correu, solícito, e o detective deu-lhe algumas instruções.

 

Vinte minutos depois, estavam todos os concorrentes ao «Grande Prémio de Nápoles», reunidos num pavilhão anexo à pista. A um canto, encontravam-se alguns membros da organização, um inspector da polícia, alguns oficiais e o colega do detective. Marcos Dias, a quem o inspector delegara a solução do caso, ocupava o centro do compartimento.

Depois de lançar em redor um olhar atento, o investigador disse, dirigindo-se em geral aos seus camaradas de corrida:

– Eu compreendo que todos os senhores estão… – sorriu e continuou, ainda com o mesmo sorriso sardónico – à excepção do criminoso, com grande interesse de apreciar o meu discurso. Porém, porque quero e devo concentrar a minha atenção apenas nos suspeitos, eu peço-vos o favor de abandonar esta sala, ficando só os que vinham próximo de Walter, quando o desastre se deu.

Marcos calou-se e os desportistas começaram a sair, permanecendo na dependência apenas quatro deles, exactamente aqueles que o detective sabia que ficariam, pois ainda se lembrava dos números das máquinas que o haviam deixado para trás. Eram precisamente esses números, que se viam nos capacetes que os motociclistas seguravam ainda.

Logo que a porta bateu, após a saída dos não suspeitos, Marcos Dias fez um breve sinal ao amigo, o qual se muniu com um pequeno livro para fazer as anotações que achasse necessárias. E então, o investigador começou:

– Um de nós é o criminoso. Porém, de mim não suspeito! – e prosseguiu, desfazendo o anterior sorriso – Qual de vós será então? É isso que vamos saber. Você!? – disse com mais som, apontando um dos colegas. – Em que lugar ia quando o Walter se despenhou?

O interrogado pareceu ficar nervoso e, depois, esclareceu num arranco:

– Precisamente atrás dele… talvez uns seis ou sete metros.

– E não foi você que o matou, pois não? – disse isto olhando-o bem nos olhos cinzentos, estudando as reacções que as suas palavras provocariam.

– Não, não fui eu realmente quem o matou. Nem sei nada… nada notei… – respirou perturbado e já mais calmo. – Ia muito atento à condução.

– Já esperava essa resposta. Eu sei que nenhum de vós vai exclamar «fui eu!» Mas… está bem senhor Mason. Se eu precisar de mais algumas declarações suas, depois lhas pedirei. – Voltando-se para outro colega, prosseguiu. – Mr. Kimson… ah! Agora me lembro. Você vinha à minha frente quando o desastre se deu, não é verdade? Notei até que a sua máquina entrou na curva demasiadamente pela direita, não foi?

– Sim, é verdade. A suspensão relaxou-se um pouco e eu temia apertar as curvas. Quanto ao desastre, confesso que me surpreendeu imenso, pois nada de anormal anotei, até porque eu vinha preocupado com a minha moto e nunca desviei a atenção dos comandos.

– Pois, pois! – aceitou o detective. – Também eu não desviava os olhos da estrada, a não ser que um de vós me passasse, ou o passasse eu. Quanto aos nossos colegas… você não surpreendeu nenhum gesto suspeito, qualquer ruído estranho, semelhante a um tiro?

– Não, senhor Marcos. Nem uma coisa nem outra… os motores faziam tal barulho…

– Obrigado. Por agora mais nada. É possível que mais tarde volte a ter necessidade das suas declarações.

Os olhos dos circunstantes não deixavam de fitar o detective, que observava cuidadosamente os rostos dos camaradas, tentando surpreender qualquer expressão de culpa. Marcos Dias sabia que o criminoso estava ali, quem sabe se já o teria interrogado. O culpado, por certo estudara cuidadosamente o seu alibi. E, considerando isso, o detective avaliava antes as perguntas antes de as arriscar, atentando minuciosamente nas respostas que em troca recebia. Voltou-se de repente e, apontando para um dos presentes, perguntou, quase gritando:

– Martinez?! Qual era a sua posição?

Todos notaram que o atingido pela pergunta se sobressaltou. Debaixo da camada de poeira e suor já seco, o seu rosto adquiriu uma cor mais viva, e respondeu:

– Eu era o último do grupo, pois o senhor ultrapassou-me momentos antes. Creio até, que na altura do acidente, a sua máquina ainda não se distanciara da minha mais do que cinco metros.

Efectivamente! O caso está mais duro do que eu imaginava… nada se esclarece. Você notou alguma coisa de anormal? Como vinha atrás, tinha possibilidade de ver todos os outros.

– Lamento! Também nada vi que possa fazer luz no caso. Como todos, eu vinha também com a minha atenção concentrada na moto. Só o bom andamento me importava. Dão-me licença que fume? Obrigado! – disse, depois de o director lhe ter feito um sinal.

Marcos Dias estava visìvelmente preocupado. Olhou mais uma vez, à sua volta, expeliu pelo nariz, com força, uma pequena porção de ar e disse, voltando o indicador para o último dos desportistas:

– Senho Sarrazi… imagino que também nada de importante tem a dizer, não é certo?

– Sim, é verdade. Eu corria com interesse, e principalmente naquela zona final não desviei a atenção da máquina. Aliás, é precisamente a essa atenção que eu devo a vitória de hoje.

Quando Sarrazi terminou, o investigador voltou a passar a mão pela testa onde ainda se notava a marca deixada pelo capacete, e falou com enfado.

– Obrigado, amigo. Acho que é melhor eu abandonar um pouco as investigações, pelo menos até nos recompormos. Estou desejoso de um banho frio… e creio que todos o desejam – depois de soltar um suspiro e passar a dextra por uma das pernas, prosseguiu. – Tenho a impressão que nenhum de nós saiu ileso. Eu tenho aqui uma queimadela que me arde furiosamente… descuidei-me com o escape. Você – continuou, falando para o homem que ùltimamente interrogara – tem uma arranhadela no rosto, coisa sem importância que muitas vezes acontece.

– Imagino que será coisa insignificante. Nem sequer notei – levou a mão ao rosto e extraiu da ferida uma pequena crosta de sangue já seco.

O detective aproximou-se um pouco do inspector e do responsável da corrida, dizendo:

– Será melhor mandá-los descansar, visto que agora nada mais se adiantará. Talvez depois duma boa refeição se consiga alguma pista.

O inspector concordou com a decisão de Marcos, e os motociclistas saíram. Os policiais iam também abandonar o pavilhão, quando um agente pediu licença para entrar e estendeu ao detective um lenço quase branco, dentro do qual estava embrulhado um objecto de formas irregulares.

– Foi encontrada precisamente no sítio onde o senhor disse para procurar – afirmou o agente, limpando ao punho do dólman o suor que lhe descia do rosto.

O detective tirou do lenço uma pistola coberta de poeira e disse, dirigindo-se ao polícia que a trouxera:

– O senhor escusava até de ter tanto cuidado, pois eu já não esperava que ela trouxesse as impressões digitais do criminoso, porquanto todos os participantes da corrida calçavam luvas. Em todo o caso, fez muito bem. Obrigado, pode retirar-se – depois, voltando-se para os presentes, informou. – Esta «Parabellum», foi sem dúvida a arma utilizada pelo criminoso. Como eu imaginava, ele lançou-a fora quando passava naquele bocado de pista horrível e poeirenta, a dois quilómetros daqui.

O inspector, examinou também a arma e devolveu-a a Marcos Dias. Este, por sua vez, premiu o fixador do carregador, e extraiu cinco cartuchos de dentro do carregador. Depois, experimentou o funcionamento da arma. Fez recuar a culatra, e o cartucho ejectado por esse movimento caiu, sem grande ruído, no soalho do pavilhão. O obeso director da corrida, iniciou um movimento de recuo que lhe ditara o instinto de conservação, mas imobilizou-se e acabou por sorrir, enquanto o jovem detective, imperturbável, se curvou para apanhar a munição. Juntou o cartucho aos outros, meteu o carregador no sítio e guardou a arma, na intenção de confrontar o calibre do cano, com o da bala que certamente o médico-legista já extraíra.

 

Marcos e Jartur, estavam nos seus aposentos do hotel «Formidabili», onde o detective, revia os apontamentos feitos pelo amigo, enquanto saboreava uma chávena de reconfortante café. O telefone tocou e Jartur foi atender, limitando-se a pronunciar o seu nome. Segundos depois, pousou o auscultador e dirigiu-se ao companheiro.

– Era o Dr. Brognoli, Diz que a «ameixa» foi encontrada no pulmão esquerdo e pertence a uma arma de nove milímetros. A morte foi imediata. O corpo apresenta inúmeras fracturas. – Jartur pegou no livro que o amigo lhe estendia, e anotou aqueles dados.

Marcos Dias sorveu mais um pouco de café e ficou imóvel, por alguns minutos, enquanto os seus olhos fitavam as ténues espirais que se elevavam do recipiente e desapareciam antes de atingir o tecto. As suas feições estavam tensas, retratando o enorme esforço que o seu cérebro fazia. De súbito levantou-se e saltou para o telefone. Discou um número e aguardou que atendessem. Jartur continuava sentado, folheando plàcidamente o último exemplar do «Corriere della Sera».

Quando Montazel falou, do outro extremo da linha, o detective disse:

– Ainda bem que o agarro em casa. Mande prender imediatamente o

– «Alto! – gritou Jartur para junto do amigo – Não vês que me ias estragando o problema?! Vá. Fala mais baixo…»

 

O «Mercedes» deslizava velozmente, deixando para trás o solo italiano. Os seus ocupantes conversavam, gargalhando abertamente sempre que um dito espirituoso o induzia. Nem o roncar do motor, nem o chiar dos pneus, nem a música da telefonia, nem o gritar dos cadeados que seguravam o atrelado onde viajava a moto, nem o sibilar do vento que lhes fustigava o rosto conseguiam ser mais fortes que a sua alegria.

Durante centenas de quilómetros a sua alegria não diminuiu. Multiplicou-se, até, quando os dois portugueses avistaram o céu azul-claro da sua pátria.

 

PERGUNTA-SE:

Quem foi o criminoso?

Qual foi o pormenor que o acusou?

Exponha o seu raciocínio.

 

 SOLUÇÃO (não publicada)

© DANIEL FALCÃO