Autor

Nove

 

Data

15 de Março de 2009

 

Secção

Mundo dos Passatempos [74]

 

Competição

Torneio Jartur Mamede

Problema nº 6

 

Publicação

O Almeirinense

 

 

Solução de:

SONHO DESFEITO

Nove

 

A hipótese de suicídio de Simas de Oliveira é de rejeitar por não se ter encontrado o instrumento mortal junto do cadáver, que sabemos não ter sido deslocado porque o corpo foi descoberto no sítio onde o sangue se derramara no momento da morte. Adicionalmente, o segundo golpe na garganta, também profundo, condiz mais com a figura de um pujante agressor do que com a de um suicida afectado por uma primeira lesão. Por fim, não há motivos para supor que alguém, diferente do presumível assassino, tivesse retirado o instrumento mortal.

O homicida seria pessoa da confiança da vítima, pois esta recebeu-o bastante cedo e em trajes de quarto. Entram no rol os três filhos, a empregada e o estudante contratado. Contudo, não surgiram indícios de envolvimento no crime por parte dos descendentes ou da empregada. Para mais, as duas filhas moravam noutra cidade e o filho e a empregada pareciam dispor de álibis comprováveis. Assim, e salvo sinal em contrário, podemos excluir estes quatro da lista de suspeitos.

Resta-nos Nuno Costa, o estudante contratado pela vítima. A ele, porém, não foram facultadas as chaves da casa, o que é de considerar, porque o homicida rodou a fechadura pelo lado de fora, tal como D. Joana a encontrou, não se servindo das chaves que estavam na taça de estanho, porque essas aí continuaram, conforme ela mostrou ao Inspector. (Não se coloca, à partida, a muito improvável entrada e saída do assassino por qualquer janela do segundo andar e, ainda por cima, de dia). O rapaz, em todo o caso, podia ter copiado as chaves da taça, das quais soube, quase de certeza, em idas à arrecadação por causa dos livros. Portanto, o pormenor das chaves não chega para o ilibar.

O jovem não apresentou álibi, tendo unicamente mostrado um talão que indicava a hora da compra dos artigos que trazia consigo, hora essa bastante posterior à da morte.

D. Joana viu-o, no descapotável, vindo de algum sítio, que podia ter sido a casa da vítima, num momento não bem definido, mas dentro de limites compatíveis com a possibilidade de ter cometido o crime.

Quando foi avistado pela empregada, ainda antes das nove, ia de camisa toda aberta mas, às 10h40, apresentou-se com um pólo azul, aparentando mudança de vestimenta. Isto dá para desconfiar, porque ao assassino também conviria um banho e mudança de roupa, devido a ter ficado salpicado do sangue que espirrou, conforme era possível concluir pelos salpicos patentes no local do crime. A camisa toda aberta, coisa estranha numa manhã cinzenta, é outra achega contra o estudante, já que é razoável entender tal postura como uma possível maneira de disfarçar manchas que seriam mais evidentes se levasse a camisa abotoada.

O jovem também revelou saber muito mais do que devia. Vejamos como. Ao assarapantar-se com a presença de um guarda no patamar deu a entender que desconhecia ter ali ocorrido uma tragédia. Como a seguir foi isolado, nada mais pôde saber. Assim, quando foi interrogado, apresentou-se como desconhecedor dos graves acontecimentos daquela manhã. O pior é que revelou (i) saber que o patrão tinha sido morto e, mais grave, (ii) que o fora de uma forma bárbara (iii) tendo ainda falado de inimigos do Dr. Oliveira, o que não vinha a propósito, por ele nem dever saber que algo de grave acontecera com o Dr. Oliveira. Comprometeu-se um bom bocado!

Conclui-se que o jovem terá sido o autor do alegado roubo, já que este, tudo o leva a crer, foi a causa do homicídio. No entanto, para abrir o cofre, teve de descobrir o respectivo segredo. Depois de dezenas de horas a trabalhar com Simas de Oliveira, pode ter topado a sua aplicação ou ter conseguido sacar o conjunto de palavras passe e códigos, criptografados numa folha de papel, que o velho por vezes consultaria. A descoberta das senhas, como se verifica pelo excerto apresentado, não era difícil. A cifra em causa, muito usada por adolescentes, obtém-se tomando todas as letras de ordem ímpar de uma sequência para, a seguir, se lhe apor todo o grupo de ordem par, mantendo-se as posições relativas das letras em cada grupo. De “criptografia”, por exemplo, resulta “citgairporfa”. Na revelação, toma-se a metade inicial do conjunto cifrado e intercala-se nela a metade final; se o número de letras for ímpar, conta-se mais uma letra para a parte inicial.

No nosso caso tínhamos duas sequências, separadas por dois pontos, cuja solução era: “Combinação do cofre: 80963”.

Põe-se ainda uma pergunta que exige resposta coerente:

Por que motivo terá Nuno Costa copiado as chaves da casa, se a porta podia ter sido aberta por Simas de Oliveira (como muito provavelmente foi) e ele podia ter saído sem rodar a fechadura pelo lado de fora? Diremos que é muito provável que o estudante tivesse querido fazer recair as culpas do sucedido sobre D. Joana ou Jaime de Oliveira, ficando ele excluído, por ser o único sem chaves da casa.

Esta última conjectura é compatível com o regresso de Nuno Costa ao local do crime, num modo de controlo da situação, e compatível com o desaparecimento da folha com as palavras passe, que ele julgaria única. Conjuga ainda bem com o facto de ele, até ali, ter apenas tocado naquilo que era transaccionável em condições de não deixar rasto, como era o caso das jóias e das colecções de moedas, para além das notas de banco que estivessem no cofre. Note-se que a preciosa miniatura do século dezoito não desapareceu nem houve movimentos bancários naquela manhã.

Finalmente, o móbil do duplo crime. Como se disse, o homicídio aconteceu, certamente, por causa do roubo. E este é capaz de ter tido origem na necessidade de sustentar luxos e pretensões incompatíveis com as possibilidades financeiras do criminoso.

Havia, pois, razões de sobra para J. Mamede ter começado a vislumbrar o que se passara, conquanto houvesse ainda muita coisa por esclarecer e comprovar.

© DANIEL FALCÃO