Autor Data 5 de Maio de 2002 Secção Policiário [564] Competição Campeonato Nacional e Taça de
Portugal – 2001/2002 Prova nº 10 Publicação Público |
O ASSASSÍNIO DO VIDENTE Onaírda Dedicado a Severina e Dic
Roland, autores cuja “finesse” literária sempre me impressionou. O crime ocorreu numa casa
de Lisboa, perto da Ajuda, em rua estreita e sem saída, que confinava com uns
terrenos da mata de Monsanto. A casa era isolada de outras da mesma rua,
mesmo encostada aos ditos terrenos. Tinha exteriormente um aspecto normal, mas segundo a vizinhança tinham sido
feitos grandes melhoramentos interiores, cujo modernismo e funcionalidade em
nada condiziam com o aspecto exterior. Estava-se no mês em que
começa o Verão e o calor já era insuportável. Lisboa sofria esse efeito e,
quando o corpo foi descoberto pela empregada de limpeza, às 18 horas, já o
mesmo exalava um odor desagradável. Para o Inspector
António Garçôa o caso estava a revestir-se de
dificuldades, dado haver quatro suspeitos, que apresentavam álibis
consistentes quando interrogados pelos investigadores da PJ que, uma vez no
local, recolheram indícios, pistas, interrogando a empregada de limpeza,
alguns vizinhos, curiosos. Garçôa relia mais uma
vez os relatórios elaborados pelos seus subordinados, que estavam convencidos
que ele já dispunha de dados suficientes para deslindar o caso sem sair da
secção. Ou não fosse ele o “teórico”, como era carinhosamente tratado – ainda por cima um crime ocorrido no dia do seu aniversário
e a três dias da data em que a Igreja comemora o dia do santo que tem o seu
nome. Os factos, tal e qual
estavam descritos nos vários relatórios, eram os que se seguem. A vítima
tinha 60 anos, era do sexo masculino e chamava-se José da Costa. Era de fraca
compleição física e ninguém lhe conhecia ocupação profissional desde que
viera morar para aquela casa, há muitos anos, onde exercia actividades ilegais de vidência e bruxaria. Dava
consultas diárias ao longo do dia a clientes vindos de longe, que nunca a
vizinhança viu entrar em sua casa alguém que morasse perto. Constava que
amealhara uma pequena fortuna e que a guardava dentro de casa. Um dos vizinhos, mais
loquaz, afirmou ter conhecimento de que a actividade
do falecido se relacionava com a aplicação de técnicas inovadoras de
bruxaria. Muitos clientes, porém, ficavam desagradados, não só porque os
resultados não correspondiam aos objectivos, mas
também porque ele cobrava demasiado pelos seus serviços. Uma particularidade
conhecida, era que ele só atendia por marcação e os
clientes eram da classe média-alta. Entravam e saíam discretamente e nunca se
viam ajuntamentos à porta. Como a rua era estreita, deixavam as viaturas nas
redondezas e vinham a pé. Todas estas confidências do vizinho foram
confirmadas pelos investigadores. A casa era térrea, igual a
tantas outras existentes na zona e era composta por um “hall”
desafogado, uma sala, dois quartos, cozinha e casa de banho. Na sala existia
uma mesa grande oval e seis cadeiras. No centro da mesa havia uma bola de
vidro translúcido, assente numa peanha de madeira pesada. Variado mobiliário
encostado às paredes completava a decoração. As janelas tinham cortinados de
tecido grosso, que mantinham a sala numa semipenumbra. No “hall”-recepção via-se uma secretária com gavetas e um telefone
sem fios. Na parede havia um cofre com a porta aberta e sinais de ter sido
remexido no seu conteúdo. Nas gavetas, José da Costa guardava toda a escrita
do seu negócio e, numa agenda actual, registava não
só o movimento diário das consultas, mas também a identificação dos seus
clientes, os dias de consulta e respectivas horas.
Primeiro, o vidente assinalava a presença do cliente com um risco a lápis e
só depois escrevia o nome, a tinta. No exterior, um muro que
separava o logradouro dos terrenos circundantes, apresentava uma abertura
regular, que funcionava como uma segunda saída da casa. Uma empregada da limpeza
assegurava diariamente o respectivo serviço. Era
uma senhora de cerca de 50 anos e que morava longe. Declarou que nunca tinha
visto cliente algum e só raramente via o patrão, dado que o seu horário de
trabalho era entre as18 e as 21 horas e coincidia com a sua ausência para
jantar, num restaurante em Algés. Nesse dia, como habitualmente, entrou em
casa e dirigiu-se logo para a cozinha para ir buscar os utensílios. Ao passar
pelo “hall” viu o cofre aberto, o que não era
costume e, curiosa, foi à sala, onde viu o José da Costa sentado numa das
cadeiras, com a cabeça tombada em cima da mesa. Tinha a cabeça empapada em
sangue e do nariz, encostado ao tampo da mesa, tinha escorrido igualmente
bastante sangue. A bola de vidro estava tombada em cima da mesa e fora do seu
lugar habitual. Aterrorizada com o que via, correu para a rua e chamou por
socorro, tendo acorrido alguns vizinhos. Dois pormenores saltaram à
vista dos investigadores: o primeiro era que os clientes da manhã do crime
estavam registados numa folha apensa à agenda, sem referir as horas da
consulta, e o segundo era que no local das 9 horas estava traçado um risco a
lápis, indicador de que apenas um cliente havia entrado, não se sabendo qual. O relatório do médico
legista assinalou que o nariz da vítima estava fracturado
e que a morte ocorreu entre as 9 e as 10 horas daquela manhã, provocada por
uma pancada violenta com um objecto sem arestas,
originando o esmagamento da calote superior e derrame da massa encefálica. Na
altura em que recebeu a pancada, a vitima tinha a
cara frontalmente encostada ao tampo da mesa, dando origem à fractura do apêndice nasal. O relatório da laboratório assinalava que não havia impressões
digitais perceptíveis, tanto na bola de vidro e
peanha, como em tudo o resto. O inspector
continuou a ler os relatórios dos seus subordinados, com as declarações dos
suspeitos. Abílio N., 40 anos,
empresário bem sucedido, declarou que nesse dia
tinha consulta marcada para as 9 e meia. No seu entender José da Costa praticava
preços altos, mas não se importava, porque o vidente também era seu
conselheiro e, como a vida lhe corria bem, continuava a lá ir. À hora exacta tocou a campainha, mas ninguém respondeu. Após
alguns minutos de espera, resolveu retirar-se. Para ocupar o resto da manhã
foi visitar um museu perto. Ainda tinha o bilhete de ingresso, feito
informaticamente e onde se via a data de entrada. Tudo parecia transparente e
o álibi consistente. Carlos F., cineasta, 35
anos, embora parecendo mais velho, disse que tinha consulta marcada para as
10 e meia, mas José da Costa não lhe abriu a porta, depois de tocar à
campainha. Esperou alguns minutos e decidiu retirar-se. Como tinha tempo
livre, pensou dar um passeio até Cascais e por lá almoçar. Sabia que o mar
estava encapelado e ele gostava de ver as ondas rebentarem nas rochas. No
caminho abasteceu a viatura com combustível em Oeiras e apresentou o talão de
fornecimento, elaborado informaticamente, contendo data e hora. Como pagou
com cartão de crédito, foi fácil constatar que falava verdade. O álibi
parecia correcto e forte. Diogo S., 30 anos,
comerciante de roupas de senhora, tinha consulta para as 11 e meia, mas
faltou. Tinha-se sentido mal durante toda a noite, com fortes dores de cabeça
e deslocou-se ao serviço de urgência do hospital, já de madrugada. Depois de
visto e medicado pelos médicos de serviço, foi encaminhado para a consulta
externa adequada aos sintomas detectados, isto é, à
consulta de Neurologia/Cefaleias. Essa consulta realizava-se sempre às
quintas-feiras e como era precisamente esse o dia resolveu não abandonar o
hospital e esperar pelo início da mesma, às 9 horas. Pelas 8 horas foi
informado que não havia vagas, mas resolveu esperar por uma desistência, o
que não aconteceu. Por volta do meio-dia foi-se embora, indo para casa
descansar até ser abordado pela polícia. Apresentou documento de entrada no
hospital, cópia da receita de medicamentos já aviados e guia de
encaminhamento da urgência para a consulta externa. Tudo conferia. Mesmo
assim, foi feito o contacto para o hospital e foi confirmado que a citada
consulta se realizava efectivamente às
quintas-feiras. O álibi parecia consistente. Alberto B., 46 anos, a
atravessar situação económica difícil. Era professor de culturismo e declarou
que chegou a casa do vidente por volta das 12 horas, talvez 10 minutos antes.
Como ninguém lhe abriu a porta, foi-se embora. E ainda bem que assim fez,
porque estava desagradado com o bruxo e pensava seriamente chamar-lhe a
atenção por andar a extorquir-lhe dinheiro sem resultados práticos. Como
tristezas não pagam dívidas, resolveu ir passear para a Baixa, mas antes foi
almoçar num restaurante caro na zona do Saldanha. Em todo o caso
apresentaram-lhe uma conta bastante elevada, no seu entender injustificada e,
portanto, pediu a factura do almoço e ainda bem,
porque agora servia-lhe de prova. Apresentou a factura
mecanografada, referindo uma refeição, sem
especificar o que consumiu, mas com data e hora. Tudo parecia correcto e plausível. Garçôa,
no entanto, interiorizou que, para quem vivia em dificuldades, almoços assim
caros não pareciam aceitáveis. Depois de ler todos estes
relatórios, o inspector levantou-se, passou um pano
pelos óculos e ficou pensativo e imóvel no meio do gabinete. Os seus
subordinados, que já o conheciam bem, tiveram a consciência de que ele nada
tinha concluído. Era inevitável que tudo ia recomeçar, com novas diligências… Mas num impulso rápido, Garçôa dirigiu-se ao telefone e marcou um número. Quando
lhe responderam, pediu uma informação. Tinha à sua frente o bilhete de
ingresso no museu, o talão de fornecimento de combustível e a factura do almoço. À medida que lhe iam respondendo, um
sorriso ia aflorando ao rosto. Chamou o subordinado mais antigo, que era eu e
disse-me: – Vamos, prepare-se, pois
vamos fazer uma detenção. Há um mentiroso nesta história e é ele o criminoso! Fiquei perplexo. O
“teórico” tinha triunfado uma vez mais…. Pergunta-se: Quem é o
mentiroso criminoso? Justifique todas as suas afirmações. |
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© DANIEL FALCÃO |
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