Autor Data 1 de Maio de 2011 Secção Policiário [1032] Competição Campeonato Nacional e Taça de
Portugal – 2011 Prova nº 5 (Parte I) Publicação Público |
GATO FARRUSCO MORRE AO LUSCO-FUSCO Onaírda Na
povoação, sem ruas interiores, praticamente reduzida ao perfil do longo da
estrada, encostada a Lisboa, junto a um contentor de lixo, no lusco-fusco de
um domingo de Outubro, aparece morto no interior de um saco o gato
“farrusco”. O felídeo ainda estava quente. A morte ocorreu cerca de meia hora
antes, aí pelas 20h00. Levou uma paulada na espinha. Certeira e a propósito. Samuel
era dono do farrusco. No dia seguinte pelas 9h00, Eva, sua empregada
doméstica, entra ao serviço, abre a porta da casa e vê o corpo do patrão no
chão. Corpo e cadeira afastados da secretária cerca de um metro, no salão
principal da sua moradia. Estava morto, bem morto. Levou fortes pauladas na
cabeça. A autópsia determina que a morte ocorreu na véspera entre as 20h30 e
as 21h30. Eva
pôs-se à disposição de Garçôa, o “teórico” da PJ.
Eva viu um vulto pôr um saco fora do contentor de lixo e isto chamou sua
atenção. O vulto seguiu para norte. Eva abriu o saco e viu o gato morto. Os
habitantes da terra conheciam o felídeo. Vadiava em todo a lado, entrava nas
casas desde que estivesse uma porta ou janela aberta. Odiavam o farrusco.
Fazia estragos onde entrava. Pediam que o gato tivesse um fim triste muito
rápido. Eva sabe do sentimento geral e vai dar a notícia aos clientes do
único café, ao lado da casa de Samuel. O café, de Diogo, estava cheio de
freguesia àquela hora. Eram 20h30. Geral foi a alegria e todos quiserem
confirmar a morte do gato. O café ficou vazio, as pessoas regressaram perto
das 21h30. Eva pensou que Samuel saberia da morte no dia seguinte. Se
estivesse vivo, claro, dizemos nós, o que não aconteceu. Garçôa tinha a noção dos
acontecimentos. Ainda não sabia o culpado ou culpados e nem os motivos.
Depois de descodificadas as perícias, saber-se-ia mais. Tinha de avançar.
Serviu-se de Eva. Costume habitual. Eva citou nomes. Caíram na mente do
“teórico”: Diogo,
dono do único café da povoação; Pedro, comerciante de móveis; Farias,
negócios de lenhas para aquecimento; e Jacques Bonet, trabalhava em madeiras. Garçôa
achou que Eva tinha ânimo a mais, meteu-a nesta lista. Relatório
preliminar do “teórico” – Não temos suspeitos. Vamos indagar a relação havida
entre a vítima (humana) e os citados. Pedro:
40 anos, divorciado – Vendia móveis em feiras. Natural da Estremadura.
Montijo (sul do Rio Tejo). Fervoroso fiel de São Pedro, patrono dos
pescadores da cidade. Fervia em pouca água. Veio para a povoação aos 15 anos.
Vivia em casa arrendada a Samuel, com bom mobiliário e caros cortinados.
Pagava renda tida por exorbitante. Deixou-a de pagar há um ano. Tinha
fornecido o recheio da moradia de Samuel, este nem metade do valor lhe tinha
pago. Alegou móveis deficientes, as cadeiras eram excelentes, assentavam
perfeitamente no chão, o resto uma porcaria. Tinha metido uma acção de despejo em tribunal. Odiavam-se mutuamente.
Pedro já tinha ameaçado de morte o seu senhorio e não se importou que o
ouvissem. Era desconfiado. Ausente, usava deixar uma janela entreaberta para
pensarem que ele estava em casa. Ao lado de sua casa, a sul, ficava a casa de
Farias, com o contentor de lixo aqui colocado no meio, e a norte o café. No
fim da povoação, a norte, ficava a casa de Samuel. Pedro
declara: esteve nesse dia na Feira de Azeitão. Às 17 horas levantou a tenda e
regressou uma hora depois. Passou pelo Montijo para depositar um donativo na
Igreja Matriz, junto da imagem de São Pedro, veio pela Ponte Vasco da Gama,
petiscou na área de serviço, fez um percurso de 50/60 kms,
chegou a casa pelas 20h00. Disse que foi depois para o café. Confirmaram que
chegou pelas 20h30. Garçôa, quando o interrogou na
sua casa, notou que um cortinado estava rasgado e caído no chão, arrancado à
força da parede. Diogo,
arrendatário do café de Samuel – Casado, sem mulher. Aparece na povoação 10
anos atrás. Esteve emigrado em França. Jactante, gaba-se de ter montado em Anglet, perto de Bayonne, uma usine de pastilhas
elásticas. Muitos anos trabalhou e vendeu bem. Quis inovar o produto, não
contou que as pastilhas, apesar de serem agradáveis, enrijavam na boca, muito
aderentes quando lançadas para o chão. Ficavam em bolas e difíceis de se
soltar onde colassem. Único remédio foi fechar a fábrica e regressar a
Portugal. Trouxe com ele grandes quantidades das pastilhas “rijas”, o que o
obrigava a mascá-las todo o santo dia para acabar
com elas. Só não mascava enquanto dormia. Enjoou-se da mulher e deixou-a por
lá. Cumpria pontualmente o pagamento da renda ao Samuel, mas este tinha uma
conta calada no café, não a querendo saldar, porque dizia que o Diogo o
andava a roubar há muitos anos. E dizia isto a toda a gente, o que
desesperava Diogo, que tinha um feitio violento. Diogo
declara: esteve no café todo o dia, nunca se ausentou até à hora do fecho, lá
para a meia-noite, mais tarde do que o habitual, dada a alegria que havia nos
fregueses pela morte do farrusco. Fez bom negócio. Farias,
solteiro – Natural da Estremadura. Montijo (sul do Rio Tejo). Negociava em
lenhas para aquecimento. Não gostava de Samuel. Este emprestou-lhe dinheiro.
Perdeu o dito e o amigo. Tinha boa moradia recheada de bons móveis e
cortinados, adquiridos e pagos integralmente ao Pedro. Farias
declara: esteve nesse fim-de-semana perto do Montijo para comprar árvores e
saiu de lá pelas 18h30. Só chegou a casa depois das 22h00. Curiosamente (para
Garçôa, claro) disse que passou pela Igreja de São
Pedro para deixar um donativo na imagem do santo. O “teórico” soube que
Farias gostava de imitar Pedro nos seus comportamentos. Garçôa perguntou-lhe se
tinha vindo pela Ponte Vasco da Gama e se tinha ido petiscar na área de
serviço, tal como tinha feito o Pedro. Ele disse que sim, mas na área de
serviço só meteu gasolina. Ironicamente perguntou se o carro dele era algum
modelo de 1930 e que andava só a 20 Kms/hora.
Farias disse que não, pois tinha um Mercedes Classe C 200 Kompressor
de 2006. Garçôa assobiou desconfiado. Jacques
Bonet, 40 anos, solteiro – Torneiro de madeiras. A
sua casa era no extremo sul da povoação ao lado da do Farias. Entre estas
havia enorme pilha de troncos desbastados de árvores que eram o negócio do
Farias. Amiúde o Bonet aviava-se de lenha para a
lareira sem o dono saber. Pedro imitava-o. Tinha a alcunha de “francês”, vá
lá saber-se porquê. Viajou e chegou à povoação por volta das 23h00, mas
ninguém o viu chegar. Tinha ido em viagem turística de uma semana a Bayonne. Jaques
Bonet declara: não engraçava com Samuel,
detestava-o. Esta viagem era desejada à muito,
praticamente desde criança. O regresso foi normal, veio num voo regular,
aborrecido por ver tanta água. Entre o sair pelas 10 horas de Bayonne e os
oito quilómetros até à aerogare, entregar o carro alugado, fazer o check-in, tempo de voo, chegada a Lisboa e ida para a
povoação durou dez horas na totalidade. Garçôa
começou a fazer contas: os voos regulares de Bayonne para Lisboa têm escala
em Paris ou Geneve
demorando 1h10 ambas as ligações. Juntava-se mais 3h10 de Paris ou Geneve para Lisboa, mais 30
minutos para recolher a bagagem, mais uma hora de diferença horária, e ida
para casa, no máximo seriam umas seis horas de viagem. Algo não estava bem. Garçôa voltou a assobiar desconfiado. Eva
– Tem actualmente uma relação secreta com Diogo, e
não quer que saibam. Trabalha para Samuel e receia ser despedida. Este sabia
do facto. Não se importa, porque Eva é uma boa empregada e exímia nas
limpezas. Eva foi casada com Pedro, mas divorciou-se dele em litígio. Teve
uma relação fugaz com o “francês”, a qual terminou. Este prometia-lhe uma
viagem a França e não cumpria a promessa. Farias cedia-lhe lenha
gratuitamente. Nesse domingo do crime, esperou que Diogo fechasse o café e
passou a noite com ele. Houve
cuidado em não mexer em nada para não prejudicar as perícias. Depois do corpo
retirado, fecharam a sala. Quando depois Garçôa
entrou no local, reparou que o chão estava impecavelmente limpo. Não abriu a
luz para não tocar no interruptor e deixou a porta aberta para haver
visibilidade. Tudo em ordem na secretária, papel ou objecto
algum caíram para o chão. Abriu uma janela da frente da sala e produziu-se
uma forte corrente de ar. Assustou-se devido a pancadas sonoras por detrás de
si. A cadeira onde se sentava Samuel balançava de um lado para o outro
ritmadamente. Quando
o caso acabou Garçôa diria que bastou ter-se
enganado numa letra no relatório para ter o trabalho mais complicado. |
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© DANIEL FALCÃO |
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