Autor

Paris

 

Data

1 de Outubro de 2000

 

Secção

Policiário [481]

 

Competição

Torneio 2000

Prova nº 12

 

Publicação

Público

 

 

A SUÁSTICA

Paris

 

Na zona este da cidade tudo era silêncio. Apenas, de quando em quando, um miado de um gato ao luar ou alguém que chegava tarde a casa interrompia o vasto silêncio que se fazia sentir em toda a zona.

Num dos novos edifícios da Rua D. Pedro I, o silêncio não era excepção. O edifício tinha quatro pisos, mas apenas os apartamentos da parte direita estavam, para já, habitados e conseguia-se distinguir as luzes acesas em todos os apartamentos, à excepção do 3º andar.

Foi no meio de todo este silêncio que uma porta se abriu, tão vagarosamente que impossibilitou qualquer ruído. Um vulto saiu com a mesma lentidão com que abrira a porta, deixando atrás de si um pedaço de esferovite em forma de cunha, de maneira a que a porta não se fechasse. Acercou-se do corrimão central e, olhando para baixo e para cima, perscrutou através da escuridão a existência de qualquer outro vulto. Ficou imóvel durante alguns momentos, e depois de se certificar que o silêncio reinava, chamou o elevador.

A primeira vez que tinha entrado no elevador tinha sido uma surpresa. Apesar de os elevadores não serem muito barulhentos, a verdade é que se faziam notar indisfarçavelmente, e a pessoa que agora nele entrava tinha ficado agradavelmente surpreendida pelo facto de este ser incrivelmente silencioso. Por isso, quando chegou ao rés-do-chão e fechou a porta atrás de si, ninguém poderia dizer que o imenso silêncio tinha sido quebrado.

O vulto acercou-se da porta que era habitada e, encostando o ouvido de encontro à mesma, escutou pacientemente. Quem quer que estivesse lá dentro estava a ver televisão e a ausência de qualquer outro barulho que não o do aparelho deixou o vulto mais sossegado. Baixou-se e pousou algo que trazia na mão esquerda. A porta da entrada do edifício era envidraçada, e embora a porta direita não fosse visível a qualquer transeunte que por aí passasse, deixava entrar alguma luz, minimizando a escuridão que se fazia sentir nos andares superiores, de maneira que a tarefa a que o vulto agora se dedicava foi facilitada. Após alguns momentos de preparação, levantou-se novamente e, com a ajuda de um pincel, desenhou algo na porta. Quando acabou, pousou tudo no chão e dirigiu-se para as escadas. Poucos segundos depois fechava a pôr-ta da sua casa.

Passados cinco minutos todo o prédio estava às escuras. O silêncio continuava a imperar.

A manhã seguinte foi agitada. Alguém tinha pintado uma suástica na porta do habitante do rés-do-chão. O homem que lá vivia, um velho mal-encarado, chamou a polícia. Não pela suástica, que ele até tinha simpatia pela extrema-direita, mas pelos estragos causados na porta. Não ia ser ele a pagar uma porta nova, garantia o velho ao polícia que, pacientemente, o ouvia e tirava notas.

Eis os detalhes mais importantes retirados dos depoimentos dos outros habitantes do prédio:

1º andar

Alexandre Gomes, 49 anos, gerente de supermercado. Tinha ficado a ver televisão até perto das 11h30, altura em que se tinha ido deitar. Não ouvira nada. Em relação ao incidente, declarou que se soubesse que mais algum vizinho era nazi, ou mesmo comunista, saía imediatamente do prédio.

2º andar

Carolina Santos, 67 anos, reformada (o relatório apontava ainda que o seu peso estava mais perto dos 200 quilogramas do que dos 100). Tinha estado a ver a telenovela até ao fim, após a qual se tinha deitado (posteriormente, verificou-se que tinha acabado às 11h35). Não tinha ouvido nada. Em relação ao acidente, tinha-se mostrado extremamente desagradada e afirmou sempre ter suspeitado de que o homem não era boa rês. Já se aconselhara com o padre sobre o que fazer.

3º andar

Anabela Queirós, 23 anos, nadadora profissional. Tinha dado um grande passeio pela cidade na noite anterior, como costumava fazer depois de uma competição, regressando a casa por volta da meia-noite e meia. Não tinha ouvido nada, e estava a pensar seriamente em mudar de casa, pois não lhe agradava viver no mesmo prédio que um… (o relatório observava que não tinha chegado a aplicar qualquer adjectivo, mas que tinha permanecido de dentes cerrados até finalmente desistir).

4º andar

Pedro Couto, 26 anos, preparador físico. Tinha estado a ler até depois das 11h30, altura em que se tinha deitado. Não tinha ouvido nada. A princípio mostrou indiferença em relação ao incidente, mas depois de alguma insistência observou que não gostava de vermelhos, quer fossem de direita ou de esquerda, e que se não o deixassem em paz ele não se importava de responder à altura.

O relatório apontava ainda que a lata de tinta, o pincel e as luvas usadas tinham sido abandonados à porta do queixoso.

Por falta de provas, o caso foi arquivado. No entanto, se a polícia tivesse acesso a este texto, facilmente depreenderia quem era o vulto:

 

A – Anabela Queirós;

B – Carolina Santos;

C – Alexandre Gomes;

D – Pedro Couto.

 

SOLUÇÃO

© DANIEL FALCÃO