Autor

Paulo

 

Data

3 de Julho de 2011

 

Secção

Policiário [1041]

 

Competição

Campeonato Nacional e Taça de Portugal – 2011

Prova nº 7 (Parte I)

 

Publicação

Público

 

 

CRÓNICA DO MEU SUICÍDIO

Paulo

 

Eu estou morto. Suicidei-me.

Foi muito o tempo que levei a determinar a forma como deixaria a vida. Apaixonado pela literatura policial tinha decidido envolver a minha morte em mistério. Os crimes em quarto fechado sempre me fascinaram. Escolhi uma morte difícil, mas que valeu a pena pela confusão que lançou.

Agora que estou morto e enquanto toda esta gente circula em torno do meu corpo, tentando resolver o mistério, observo a estante onde repousam as obras de John Dickson Carr, O Mistério de Bow, de Zangwill, o francês Leroux com o maravilhoso O Mistério do Quarto Amarelo, Agatha Christie e O Natal de Poirot, Ellery Queen e muitos outros.

Lá andam os polícias e outros técnicos de volta do meu corpo, mirando o quarto, observando as pistas: as falsas e as verdadeiras.

O que sentem? O que vêem? O que dizem?

Sentem o desespero de não compreender. Sentem uma temperatura de 32 graus Celsius. Vêm um quarto com um corpo sem vida, uma cadeira, muito sangue, dois aquecedores eléctricos de barras de resistências ligados, uma janela fechada por dentro, com barras na janela, impedindo que alguém por lá pudesse passar, uma única porta que encontraram fechada à chave, a chave da porta pelo lado de dentro, uma estante com livros policiais, com a prateleira do fundo vazia, que decerto ignoram serem todos sobre crimes em quarto fechado, uma cadeira de madeira encostada a uma das paredes, um estojo metálico para um punhal, com uma tira de borracha em volta da concavidade de resguardo, que o fecha hermeticamente, uma mesa, um copo vazio na mesa, as paredes nuas sem quadros, um candeeiro de três lâmpadas pendente do tecto, luvas de cabedal preto calçadas, uma pequena arca congeladora desligada, uma maçã verde e uma outra vermelha em cima da mesa, a vermelha com uma dentada, uma beata num cinzeiro ao lado do copo, um isqueiro amarelo junto ao cinzeiro e sangue, muito sangue espalhado pela sala, que a carótida perfurada esguicha que se farta, embora só alguns segundos, até o coração parar.

“Que calor que aqui está! Mesmo com o aquecedor desligado a temperatura continua alta.”

“Foram muitas horas ligado. Recebemos hoje a carta a dizer que encontraríamos aqui um corpo, mas não temos ainda a certeza quando é que ocorreu a morte.”

“Que calor insuportável!”

Sim, eu tinha comunicado a minha morte à polícia. Tinha escrito uma carta comunicando que encontrariam um corpo naquele lugar. Eu sabia que quando chegassem eu teria morrido há mais de 24 horas, o que lhes dificultaria a tarefa de deslindarem a minha morte.

Quarto fechado. Ferida perfurante. Inexistência de arma.

“Será que o mataram? Mas como? A carta não dá para perceber se foi enviada pela vítima, e temos um suicídio, ou pelo assassino.”

“Só pode ser assassínio. Reparem que não há aqui nenhuma arma que pudesse ser utilizada para cortar a carótida. Nem ele se poderia desfazer dela depois de fazer o corte se tivesse sido suicídio. Não teria tempo.”

“É só sangue. Enquanto ainda bateu o coração ele fartou de sangrar.”

“Tem que ser suicídio. Janela fechada por dentro. Chave na porta. Porta fechada pelo interior… esta porta não fecha com a chave por dentro. Por baixo da porta não há espaço que permita passar um objecto que fizesse de alavanca para rodar a chave e depois fosse puxado.”

“Esta chave nem tem orifício onde se introduzisse um objecto para a rodar. Definitivamente concordamos que esta porta jamais poderia ter sido fechada à chave por alguém do lado de fora.”

“Nada disso interessa. Aqui não existe arma e por isso alguém a retirou. Quem? O assassino!”

“Já dá para perceber como é que a carótida foi cortada?”

“Houve um corte com perfuração. Com uma lâmina que foi alargando. Parece um punhal.”

“Devia ser o punhal que estava nesta caixa aberta. Mas para onde foi?”

Que divertido vê-los na confusão. Levantarem o corpo. A autópsia. Os exames toxicológicos. Múltiplas análises.

“Já estava morto entre 24 e 28 horas quando lá chegámos.”

“Os relatórios são claros. O ferimento adequa-se a uma lâmina semelhante à do punhal que estaria no estojo.”

“Havia maçã no estômago.”

“O cigarro foi fumado por ele e no isqueiro e no copo só existem as suas impressões digitais.”

“Mas para onde foi o punhal? Como é que o assassino saiu da sala? Vimos que era impossível fechar a porta pelo lado de fora com a chave dentro. Era impossível! Foi suicídio!”

“Não pode ser. O punhal não estava na sala e ele não poderia nunca cortar a carótida, atirá-lo pela janela, e fechá-la novamente. Não tinha tempo para isso. O punhal saiu, levado pelo assassino.”

Que deleite. Que gozo. Os génios da polícia reunidos num gabinete, na maior da confusão.

A porta abriu-se e um rosto conhecido surgiu.

Dr Fell, welcome!”

Pesadelo! Não pode ser! Terror! Incrível! Ele vai descobrir!

Olho no tecto. Afinal não morri. Foi apenas um sonho.

À medida que o ritmo cardíaco normalizava olhei o velhinho livro da colecção Xis do mestre John Dickson Carr em cima da mesa-de-cabeceira. Fora ali, naquela que é considerada a obra-prima do quarto fechado, que eu me inspirara para o meu pesadelo.

Caros detectives, não é preciso ler o livro de John Dickson Carr para saber como é que eu me suicidei. Mas ler, faz sempre bem, em especial bons livros policiais.

Com base nas informações do meu pesadelo, pede-se ao leitor que ajude os polícias, que sem a intervenção do Dr. Fell decerto ficariam na ignorância, a descobrirem como é que a minha morte terá ocorrido e a arma desaparecido.

 

SOLUÇÃO

© DANIEL FALCÃO