Autor

Paulo

 

Data

2 de Julho de 2017

 

Secção

Policiário [1352]

 

Competição

Campeonato Nacional e Taça de Portugal – 2017

Prova nº 6 (Parte I)

 

Publicação

Público

 

 

VINTE ANOS DEPOIS

Paulo

 

Ivo Diz tinha nas mãos o futuro de um ex-colega de curso. Tinham sido grandes amigos nos bancos do Técnico, vinte anos atrás, mas o tempo encarregara-se de os separar e conduzir por caminhos muito distintos. De comum apenas o facto de nenhum dos dois ter seguido profissionalmente o curso que os aproximara.

Ivo entrara na Polícia Judiciária enquanto Gil Pio abordara a carreira de jornalista. Passara pela rádio, pela televisão e terminara num diário de grande tiragem.

Ivo Diz sabia que Gil Pio, com quem nunca mais se cruzara depois de terem terminado Engenharia Química, se dedicava a outras atividades, que caiam no âmbito da ilegalidade. Havia fortes suspeitas de ser membro de um grupo que traficava diamantes e joias roubadas. Os elementos do bando eram quase todos conhecidos da polícia. A dificuldade estava em conseguir apanhá-los em flagrante. Pensava-se que Gil utilizava um código nos seus artigos de jornal para marcar os pontos e momentos de transação, mas nunca fora descoberta qualquer mensagem oculta nos textos.

A polícia sabia que uma grande quantidade de diamantes de sangue ia ser traficada. Não sabia quando e onde. O esforço para tentar descodificar as mensagens era enorme. Estava difícil. Foi Ivo Diz quem conseguiu decifrar uma das mensagens.

No jornal de 14 de fevereiro de 2017 encontrou o caminho que levaria Gil Pio à prisão. O título do artigo era O Rio Morto, e o texto é o que se segue.

“Sessenta e sete anos de vida para ver o meu rio neste ponto final!” Foi com estas cinquenta e duas letras, em que o jornalista coloca o ponto de exclamação, que Alberto Chaveiro descreveu a frustração que o marcava ao ver o rio da sua cidade moribundo.

Nascido e criado na zona ribeirinha, conseguia até há poucos anos atrás arranjar algum sustento no rio. “Até aos meus cinquenta e sete anos”, contava apontando os dedos das mãos, “podia pescar e comer do que o rio dava. Agora nada disso é possível. Está tudo morto”.

Percorrendo a longa zona ribeirinha vê-se a água suja, sem peixes. Muitos são os pequenos botes abandonados ao longo das margens. Não foi necessário percorrer longa distância para contar setenta e sete barquitos sujos, alguns deles semiafundados. Destroços curvos boiando nas águas, como virgulas na folha branca sem texto.

Esta é a verdadeira tragédia que invade as casas das noventa e nove famílias que perderam parte do seu sustento.

Da edilidade não se vê qualquer passo para melhorar a situação. Do anterior presidente, que ocupou o poder vários mandatos, não houve nenhuma atitude para resolver o problema. O atual edil tem sido perito, nas palavras dos moradores, em reticências. Nem as eleições que se aproximam lhe mudam a pontuação.

O rio morreu e a indústria que o destruiu não está melhor. Apenas vinte e três fábricas, das cinquenta e três que laboraram nas margens do rio, e que o poluíram, continuam em funcionamento. Apesar de obrigadas a terem tratamento de efluentes, fomos informados de que apenas dezasseis o possuem, faltando sessenta e três dias para que termine o prazo dado pela autarquia para as restantes resolverem o problema.

Alberto Chaveiro não acredita que tal suceda, diz-me enquanto se encosta ao gradeamento velho de ferro oxidado, que protege a pequena escadaria de pedra que conduz à água que vai banhando a data de construção gravada em numeração romana no último degrau. “Só a fábrica de enchidos despejou para aqui lixo como quis durante trinta e três anos. Acha mesmo que isto agora se vai resolver?” Pergunta-me, deixando no ar o ponto de interrogação.

A água suja que nem toneladas de cloro poderiam tornar potável já não espelha esperanças, que não existem, que há muitos anos foram morrendo ou fugindo para outros mares e outras terras. “Só tenho um desejo”, repete várias vezes Alberto Chaveiro, pelo menos oito foram as que contámos, fazendo vaguear o olhar pelo escuro das águas. “Se deus me deixar chegar à idade do meu pai, que morreu aos oitenta e oito anos, gostaria de ver este rio voltar a ter a água transparente como quando pedi namoro à minha mulher, no dia em que ela fez dezasseis anos”.

Assim esperamos que possa acontecer, mas sem ser preciso esperar tanto.

A Policia Judiciária, com base na descoberta de Ivo Diz, entrou em campo. No dia e hora prevista, no local combinado para o encontro, conseguiram prender o grupo que se preparava para fazer mais um negócio. Ivo Diz ficou no carro enquanto os outros elementos procediam às detenções. Viu o seu antigo colega algemado, a ser transportado para outro veículo. Não teve coragem para lhe falar. Tinham sido amigos. A vida e as escolhas separara-os. Vinte anos depois.

Pede-se que os leitores indiquem para onde e quando estava marcada a transação dos diamantes e como é que Ivo Diz descobriu.

 

SOLUÇÃO

© DANIEL FALCÃO