Autor Data 5 de Janeiro de 2003 Secção Policiário [599] Competição Campeonato Nacional e Taça de
Portugal – 2002/2003 Prova nº 4 Publicação Público |
“LIGHTS” Peter Pan Estava morto. Eu estava
morto. Finalmente. Tinha sonhado aquela morte mil vezes. Alguém se abeirou de
mim e procurou sinal de vida. Mas nada. Juntara-se uma pequena
multidão entretanto e foi chamada uma ambulância. Eu, para além de estar
morto, para dizer a verdade até me sentia bem. Jazia ensopado na rua molhada
pela chuva que caíra. As pessoas olhavam-me com pesar e algumas até passavam
ao largo, horrorizadas ao perceber a cena. Havia uma violência de espanto no
meu estado, misto de incredulidade e estranheza. Eu, morto? Estas coisas
afinal só aconteciam aos outros! Foi nesta turbulência de
pensamentos que me puseram numa ambulância e me levaram para o hospital. Daí
seguiram-se as formalidades. Levaram-me depois para uma espécie de morgue,
numa sala a meia-luz e de aspecto sujo. Havia oito
mesas dispostas em rectângulo no centro da sala
onde descansavam sete corpos à minha espera. Fui
colocado num dos lados, virado de frente para a porta única de entrada. Mais tarde soube que era
uma cave, sem luz e sem janelas. Havia só um painel envidraçado que dava para
uma sala de espera. Eu, de cabeça tombada para o lado do meu coração podia
ver essa sala. Percebi a existência de um elevador monta-cargas por onde
transportavam os cadáveres. Não havia nenhuma outra saída, a não ser, no lado
oposto, o vislumbre de um lanço de escadas de serviço que conduziam até à
superfície. De um lado desciam os mortos, do outro, seguramente os vivos. Nessa saleta estava uma
vintena de pessoas, algumas sentadas, outras em pé, ou acabrunhadas ou
confortando-se entre si. Pareciam não estar a olhar para a sala repleta de
cadáveres, como se não pudessem ver para dentro. Os corpos em meu redor
pareciam frescos, como eu acabados de morrer. As
pessoas pareciam já estar há algum tempo à espera, como se aguardassem alguma
indicação para entrar. Reconhecimento dos corpos,
pensei. No nosso espaço havia um indivíduo de bata branca que tirava
apontamentos, acompanhado de um outro de perfil esfíngico e de capuz.
Sinistro. A sua face estava encoberta. O médico, o da bata, parecia
embrenhado na escrita, não parava de escrever. Eu olhava sobretudo para a
saleta à espera de ver alguém familiar. – Bem, vamos ver quem é o
contemplado… – disse o médico. – Algum destes oito há-de
poder regressar. Não percebi o que ele
dizia. Por um lado estranhava que aquela gente à espera se juntasse toda ali
à mesma hora. – Olha, Poeira – disse o
médico para o outro –, este aqui foi sempre um bandido, morreu como viveu, de
forma violenta. Não será reconhecido – apontou para o tipo à
minha direita. – Este era um artista, mas
um insatisfeito e um infeliz. Nunca encontrou o que procurava – disse do que
estava à direita do anterior. – Conheceu muita gente mas morreu sozinho. – Todos morremos sozinhos!
– sentenciou a Esfinge numa voz cavernosa. O da bata continuou a sua
ronda no sentido do rectângulo. – Este aqui era um atleta.
Velocista. Corria os cem metros bem rápido. Só não escapou do carro que o
atropelou – e apontou para o seguinte. Começou a dar a volta ao rectângulo do lado oposto ao meu. – Este era um judeu
conhecido no meio, podre de dinheiro mas que nunca deu nada a ninguém, nem à
própria família. Aqui há-de haver gente a bater à
porta. Era curioso verificar que
estávamos todos virados de frente para a porta de entrada. O da bata
continuou na direcção do corpo que estava à
esquerda do judeu. – Esta menina era uma
prostituta. Tão nova e até engraçada. Acabou estrangulada por um patife
qualquer. Decerto que ficará por aqui – rematou. – Este aqui era um vulgar
chefe de família. Era um bom homem. Talvez tenha alguma hipótese – apontou
para o seguinte. Depois o homem da bata
deteve-se junto ao corpo que estava por detrás de mim. – Olha, Poeira, este era um
pastor afamado que arrastava multidões com o seu dom da palavra. Mas morreu
como os outros. É o que tem mais hipóteses de subir à superfície. A seguir olhou para o meu
corpo e para a camisola que eu envergava e que dizia Alundain,
um local das minhas muitas viagens. Ao ser interrompido não
chegou ele a dizer quem eu era e que tivera morte súbita, fulminado em plena
via pública por um ataque de coração. Foi o momento em que começaram a entrar
as pessoas chegadas que vinham identificar os corpos. Primeiro entrou uma
mulher que deixou as duas crianças que estavam consigo na sala de espera e se
encaminhou para o corpo que lhe era destinado e que estava, como todos,
tapado por um lençol; seguiu-se uma outra mulher, muito pintada e com uma
saia muito curta de cabedal; veio também um homem de preto e colarinho branco
que estivera com um grupo numeroso de pessoas; e logo a seguir um outro de
fato de treino; ainda apareceram depois um indivíduo de ar desconfiado,
mal-encarado, olhando de soslaio e frequentemente para trás, e uma mulher
mascarada de columbina como se viesse directamente
do circo; a penúltima personagem a entrar era um homem de chapéu preto num
fundo também negro com que trajava e o seu cabelo era muito particular;
entrou por fim uma senhora de idade que tinha um ar de extremosa mãe e que
como os restantes tomou o seu lugar. – Agora é que é o momento
da verdade. Quem ficar será o último a sair e levará o corpo para a
superfície – concluiu. Houve um momento de
“suspense” e de paragem no tempo, antes de o acompanhante do homem da bata
começar, um a um, a destapar os corpos. Fez-se então um estranho
silêncio. Com a emoção ninguém se manifestou, eram apenas silhuetas
recortadas em silêncio num mar de olhares. Caleidoscópio. Dinheiro, crime,
oratória, amor verdadeiro, amor comprado, orfandade, liberdade de espírito e
liberdade de corpo. A luz mortiça da sala começou então a aumentar até
cintilar e se tornar ofuscante. Era intolerável. Uma dor penetrante e
intolerável. Um a um os presentes foram saindo e, voltando à sala de espera,
desapareceram de repente à direita. Onde nós estávamos, apenas uma pessoa
permaneceu impassível. E de repente entre esse corpo vivo e o corpo morto
diante de si fez-se uma ponte e formou-se um arco-íris de uma beleza
inenarrável. O corpo morto não soube depois o que lhe aconteceu. Não se viu
ser empurrado e levado até ao monta-cargas e com ele essa pessoa que o
reconhecera. Sentiu apenas do sono profundo emergir uma catadupa de memórias
da sua infância feliz e todas as vivências por que passara, como se agora
fizessem sentido e nesse vulcão de imagens e emoções estivesse a ser puxado
para cima numa torrente irresistível. Esse corpo viu-se então
numa vasta pradaria a perder de vista. À sua frente estavam cravadas na terra
sete campas e sete cruzes. Todas tinham o mesmo epitáfio: “Foi tudo uma
questão de amor...” Questões: 1 – Dentro do simbolismo
emergente do conto e da interpretação do texto, quem subiu à superfície? 2 – Que argumentos aduz
para a escolha? Faça as oito associações psicológicas tripartidas referentes
aos oito corpos como reforço da sua solução. |
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© DANIEL FALCÃO |
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