Autor Data 20 de Janeiro de 2012 Secção Correio Policial [16] Publicação Correio do Ribatejo |
“LIGHTS” Peter Pan Estava
morto. Eu estava morto. Tinha sonhado aquela morte mil vezes. Alguém se
abeirou de mim e procurou sinal de vida. Mas nada. Juntara-se
uma pequena multidão entretanto e foi chamada uma ambulância. Eu, para além
de estar morto, para dizer a verdade até me sentia bem. Jazia ensopado na rua
molhada pela chuva que caíra. As pessoas olhavam-me com pesar e algumas até
passavam ao largo, horrorizadas ao perceber a cena. Havia uma violência de
espanto no meu estado, misto de incredulidade e estranheza. Eu, morto? Estas
coisas afinal só aconteciam aos outros! Foi
nesta turbulência de pensamentos que me puseram numa ambulância e me levaram
para o hospital. Daí seguiram-se as formalidades. Levaram-me depois para uma
espécie de morgue, numa sala a meia-luz e de aspecto
sujo. Havia oito mesas dispostas, em rectângulo, no
centro da sala onde descansavam sete corpos à minha
espera. Fui colocado num dos lados, virado de frente para a porta única de
entrada. Mais
tarde soube que era uma cave, sem luz e sem janelas. Havia só um painel
envidraçado que dava para uma sala de espera. Eu, de cabeça tombada para o
lado do meu coração, podia ver essa sala. Percebi a existência de um elevador
monta-cargas por onde transportavam os cadáveres. Não havia nenhuma outra
saída, a não ser, no lado oposto, o vislumbre de um lanço de escadas de
serviço que conduziam até à superfície. De um lado desciam os mortos, do
outro, seguramente os vivos. Nessa
saleta estava uma vintena de pessoas, algumas sentadas, outras em pé, ou
acabrunhadas ou confortando-se entre si. Pareciam não estar a olhar para a
sala repleta de cadáveres, como se não pudessem ver para dentro. Os corpos em
meu redor pareciam frescos, como eu acabados de
morrer. As pessoas pareciam já estar há algum tempo à espera, como se
aguardassem alguma indicação para entrar. Reconhecimento dos corpos, pensei. No nosso espaço havia um indivíduo de bata
branca que tirava apontamentos, acompanhado de um outro de perfil esfíngico e
de capuz. Sinistro. A sua face estava encoberta. O médico, o da bata, parecia
embrenhado na escrita, não parava de escrever. Eu olhava sobretudo para a
saleta à espera de ver alguém familiar. –
Bem, vamos ver quem é o contemplado… – disse o médico. Algum destes oito há-de poder regressar. Não
percebi o que ele dizia. Por um lado estranhava que aquela gente à espera se
juntasse toda ali à mesma hora. –
Olha, Poeira – disse o médico para o outro –, este aqui foi sempre um
bandido, morreu como viveu, de forma violenta. Não será reconhecido – apontou
para o tipo à minha direita. –
Este era um artista, mas um insatisfeito e um infeliz. Nunca encontrou o que
procurava – disse do que estava à direita do anterior. – Conheceu muita gente
mas morreu sozinho. –
Todos morremos sozinhos! – sentenciou a Esfinge numa
voz cavernosa. O
da bata continuou a sua ronda no sentido do rectângulo.
–
Este aqui era um atleta. Velocista. Corria os cem metros bem rápido. Só não
escapou do carro que o atropelou – e apontou para o seguinte. Começou a dar a
volta ao rectângulo do lado oposto ao meu. –
Este era um judeu conhecido no meio, podre de dinheiro mas que nunca deu nada
a ninguém, nem à própria família. Aqui há-de haver
gente a bater à porta. Era
curioso verificar que estávamos todos virados de frente para a porta de
entrada. O da bata continuou na direcção do corpo
que estava à esquerda do judeu. –
Esta menina era uma prostituta. Tão nova e até engraçada. Acabou estrangulada
por um patife qualquer. Decerto que ficará por aqui – rematou. –
Este aqui era um vulgar chefe de família. Era um bom homem. Talvez tenha
alguma hipótese – apontou para o seguinte. Depois
o homem da bata deteve-se junto ao corpo que estava por detrás de mim. –
Olha, Poeira, este era um pastor afamado que arrastava multidões com o seu
dom da palavra. Mas morreu como os outros. É o que tem mais hipóteses de
subir à superfície. A
seguir olhou para o meu corpo e para a camisola que eu envergava e que dizia Alundain, um local das minhas muitas viagens. Ao
ser interrompido não chegou ele a dizer quem eu era e que tivera morte
súbita, fulminado em plena via pública por um ataque de coração. Foi o
momento em que começaram a entrar as pessoas chegadas que vinham identificar
os corpos. Primeiro entrou uma mulher que deixou as duas crianças que estavam
consigo na sala de espera e se encaminhou para o corpo que lhe era destinado
e que estava, como todos, tapado por um lençol; seguiu-se uma outra mulher,
muito pintada e com uma saia muito curta de cabedal; veio também um homem de
preto e colarinho branco que estivera com um grupo numeroso de pessoas; e
logo a seguir um outro de fato de treino; ainda apareceram depois um
indivíduo de ar desconfiado, mal-encarado, olhando de soslaio e
frequentemente para trás, e uma mulher mascarada de columbina como se viesse directamente do circo; a penúltima personagem a entrar
era um homem de chapéu preto num fundo também negro com que trajava e o seu
cabelo era muito particular; entrou por fim uma senhora de idade que tinha um
ar de extremosa mãe e que como os restantes tomou o seu lugar. –
Agora é que é o momento da verdade. Quem ficar será o último a sair e levará
o corpo para a superfície – concluiu. Houve
um momento de “suspense” e de paragem no tempo, antes de o acompanhante do
homem da bata começar, um a um, a destapar os corpos. Fez-se
então um estranho silêncio. Com a emoção ninguém se manifestou, eram apenas
silhuetas recortadas em silêncio num mar de olhares. Caleidoscópio. Dinheiro,
crime, oratória, amor verdadeiro, amor comprado, orfandade, liberdade de
espírito e liberdade de corpo. A luz mortiça da sala começou então a aumentar
até cintilar e se tornar ofuscante. Era intolerável. Uma
dor penetrante e intolerável. Um a um os presentes foram saindo e, voltando à
sala de espera, desapareceram de repente à direita. Onde nós estávamos, apenas
uma pessoa permaneceu, impassível. E de repente entre esse corpo vivo e o
corpo morto diante de si fez-se uma ponte e formou-se um arco-íris de uma
beleza inenarrável. O corpo morto não soube depois o que lhe aconteceu. Não
se viu ser empurrado e levado até ao monta-cargas e com ele essa pessoa que o
reconhecera. Sentiu apenas do sono profundo emergir uma catadupa de memórias
da sua infância feliz e todas as vivências por que passara, como se agora
fizessem sentido e nesse vulcão de imagens e emoções estivesse a ser puxado
para cima numa torrente irresistível. Esse
corpo viu-se então numa vasta pradaria a perder de vista. À sua frente
estavam cravadas na terra sete campas e sete cruzes. Todas tinham o mesmo
epitáfio: “Foi tudo uma questão de amor…” Questões
a responder: 1
– Dentro do simbolismo emergente do conto e da interpretação do texto, quem
subiu à superfície? 2
– Que argumentos aduz para a escolha? Faça as oito associações psicológicas
tripartidas referentes aos oito corpos como reforço da sua solução. |
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© DANIEL FALCÃO |
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