Autor

Ribeiro de Carvalho

 

Data

3 de Fevereiro de 1989

 

Secção

O Detective [65]

 

Competição

2ª Supertaça Policiária - Cidade de Almada

Problema nº 5

 

Publicação

Jornal de Almada

 

 

Solução de:

POR FAVOR A MORTE

Ribeiro de Carvalho

 

De repente tudo se encaixava perfeitamente. O cigano era a peça estranha mas também a que ordenava tudo.

Peguei no carro e dirigi-me a casa de D. Cristina Margarida. Tinha-lhe prometido e ela iria ser a primeira pessoa a saber. O ritual cumpriu-se, tal como da primeira vez. Mandaram-me entrar e fiquei à espera. Ela entrou e parecia mais triste do que ontem. Era natural. Fiquei um pouco atrapalhado. Não sabia como havia do começar.

– Já tem alguns indícios? – perguntou-me.

– Já sim, minha senhora.

Fiz um pequeno intervalo.

– Mas primeiro permita que lhe conte uma pequena história. Havia, há anos, uma figura política em franca ascensão e a quem todos auguravam um grande futuro. Esse político teve um deslize e foi obrigado a ir “enterrar-se” na província. Quando essa história caiu no esquecimento, ele começou de novo a sua ascensão, agora com o apoio total da mulher com quem tinha casado e que o adorava.

As lágrimas começaram a rolar-lhe pelas faces e eu sentia cada vez mais dificuldades em falar.

– Mas esse político não tinha emenda. Novamente se envolveu com outra mulher, sem pensar nas consequências. Mas a mulher legítima pensava Sabia que se essa, chamemos-lhe “aventura”, fosse conhecida, a carreira dele ficaria arruinada para sempre. Ela não ousava falar-lhe. Gostava demasiado dele para dar a conhecer que sabia da sua “aventura”. Então, resolveu ir falar com a “aventura”. Meteu um revólver na mala e

Deixei-a chorar. Quando se acalmou, foi ela que continuou.

– Eu não pretendia fazer-lhe mal. Meti o revólver na mala, sem saber o que fazia. Estava desesperada. Só pretendia falar com ela e convencê-la a acabar com tudo, a ir-se embora. Cheguei lá a casa e ela recebeu-me muito bem. Estivemos a beber chá e eu julgava que a convenceria. Por amor do meu marido. Eu não podia deixar que a carreira dele acabasse, porque se isso acontecesse ele nunca mais se recomporia. A política era toda a vida dele. A política e as… mulheres. Mas ela começou a dizer que ele se ia divorciar para casar com ela. E foi então que tudo aconteceu. Não sei o que me deu. Só me lembro de estar com o revólver na mão e ela estar à minha frente com o sangue a sair às golfadas.

– E então a senhora resolveu limpar todos os indícios. É que se fosse apanhada, o seu marido estaria também arruinado.

Metia-me pena.

– É verdade. Fiz isso mais por ele do que por mim. Eu tinha as luvas calçadas e sabia que não tinha deixado impressões em nenhum lado. Parti a janela e abri-a para julgarem que tinha sido alguém de fora.

Como dizer-lhe que ela se enganou? Como dizer-lhe que se os vidros estavam do lado de fora, a janela linha sido partida por dentro?

Ela estava mais calma agora. E o olhar de medo que tinha, desaparecera-lhe. Mais para mim do que para ela, continuei.

– O chá foi o ponto de partida. O visitante deveria ser uma mulher. Um homem normalmente bebe café. Mas se isso era um ponto da partida, nunca foi um dado objectivo. Sabia, porém, que o assassino era canhoto e que usava luvas. A carteira de fósforos, que era nova e que tinha seis fósforos arrancados do lado esquerdo tinha sido deixada por esquecimento, mas não tinha impressões digitais. Só alguém que usasse luvas não deixaria impressões digitais na carteira e nas duas beatas, além de que a boquilha lhe permitia fumar com luvas. Quando partiu a janela, um dos vidros rompeu a luva, ficando alguns pelos agarrados e arranhando-a ligeiramente. A carteira de fósforos indicava que o visitante era canhoto. Só um canhoto é que arranca os fósforos do lado esquerdo. E a senhora é canhota, verifiquei isso quando acendeu o cigarro com a mão esquerda, com a curiosidade de gastar 3 fósforos para um cigarro!

Olhava-me agora serenamente, mostrando uma firme resolução no rosto. Gostava mais assim. Tornava tudo mais fácil.

– O cigano confundia-me. Não sabia qual era o papel dele. Quando procurei saber se algum gastava mais dinheiro do que o normal, foi porque não se encontrou em casa de Celeste nenhum dinheiro e pensei que talvez isso fosse motivado por algum roubo. Mas não estava nada desarrumado. E então lembrei-me de que o vizinho tinha dito que a luz da casa se apagou depois do cigano se ter retirado. Logo, o cigano vira o que se passara dentro da casa.

– É verdade. Ele viu tudo. Veio ter comigo na segunda-feira pedir-me dinheiro.

– E a senhora deu-lhe. E ontem veio cá outra vez

– Disse-me que se queria ir embora, que andavam a fazer perguntas sobre ele e eu dei-lhe mais dinheiro.

Calámo-nos. Era triste o que se estava a passar. O marido não merecia uma mulher assim. Que tudo tentou.

– Peço-lhe uma coisa. Precisava de ir ao meu quarto. Posso?

Olhei-a bem naqueles olhos negros e profundos. O marido estava liquidado. Ela sabia-o. Acenei com a cabeça. Uma mulher destas não se prende. Lembrei-me que ela também sabia conduzir.

© DANIEL FALCÃO