Autor

Rip Kirby

 

Data

31 de Dezembro de 2000

 

Secção

Policiário [494]

 

Competição

Torneio 2000

Prova nº 11

 

Publicação

Público

 

 

Solução de:

MISTÉRIO NUMA NOITE DE VERÃO

Rip Kirby

 

É evidente que não se trata de um suicídio e a tal conclusão chega-se tanto pelos indícios presentes como pelos ausentes. A pistola pendia do dedo indicador presa pelo guarda-mato, com o cano virado para a frente. Se a arma tivesse sido empunhada pela vítima teria ficado com o cano virado para trás. Naquela posição só o assassino a poderia ter colocado.

Sob a mão esquerda encontrava-se um papel onde havia sido iniciada uma carta de carácter comercial. O suicídio, sendo sempre um acto de desespero, nunca é, porém, um acto irreflectido. O suicida antes de pôr em prática o seu projecto pensa nele maduramente e quando se decide não perde tempo com tarefas que nada têm a ver com aquilo que tem em mente, como escrever uma carta comercial por exemplo.

No lado direito do dedo médio da mão esquerda, junto da unha, havia um pequeno endurecimento da pele que apresentava um ligeiro tom azulado, bem como a polpa dos dedos indicador e polegar. Este endurecimento da pele no dedo referido é característico de quem escreve muito à mão. Sendo na esquerda isso indica que a pessoa é canhota e um canhoto não empunharia a pistola com a mão direita. O tom levemente azulado que os dedos apresentam deve-se à pequena fuga de tinta que há na caneta, um pouco acima do aparo.

Vejamos agora os indícios ausentes. O inspector Eduardo Trindade não encontrou a cápsula da bala disparada, o que significa que ela foi levada do local, e isso não poderia ser feito por um suicida.

Também não foi encontrado nada que tivesse servido para, pegar fogo à bola de papel – que, na ocasião, o inspector supôs tratar-se de um testamento –, nem para acender os cigarros de que foram encontrados restos num cinzeiro. Tendo-se concluído que não se trata de um suicídio, só pode ser encarada a hipótese de crime. Neste caso, quem teria sido o criminoso?

Comecemos por pesar a possibilidade do crime ter sido levado a cabo por um estranho. Em tal caso, o assassino, para penetrar na propriedade só o poderia fazer entrando pelo portão ou saltando o gradeamento. Pelo portão não podia entrar: se o fizesse, os dois cães barrar-lhe-iam o caminho.

A hipótese de ter saltado o gradeamento também está fora de questão. Se o tentasse, as roseiras que se engavinhavam na grade em toda a sua extensão e altura teriam ferido o/a assaltante. Além disso, ficariam marcas nas roseiras que nos indicariam o local por onde havia sido feita a escalada; mas Eduardo Trindade, quando circundou a propriedade, não notou qualquer dano nas roseiras. Por outro lado, ainda que um possível assaltante tivesse conseguido ultrapassar a grade teria depois os cedros que, plantados muito juntos, não permitiam vislumbrar o interior da propriedade. Se não permitiam vislumbrar, muito menos permitiriam a passagem de alguém. Portanto, estas árvores constituíam uma barreira ainda mais difícil de ultrapassar do que o gradeamento.

Em presença destes factos, só nos resta abandonar a hipótese de o crime ter sido praticado por um estranho, pelo que só podia ter sido um dos habitantes da moradia. Num dos relatórios, naturalmente o do médico, que dois dias depois do crime Eduardo Trindade leu, é afirmado que a morte teria ocorrido entre as 21h30 e as 23h30. Tendo em conta esta afirmação, tanto os empregados da casa como o coronel Ernesto de Menezes ficam ilibados, pois este último só subiu para o seu quarto às 23h45 e até essa hora esteve sempre na companhia dos empregados – com excepção do João Fonseca, que às 23h00 ouviu os cães ladrar e foi ver o que se passava, não tendo regressado à moradia.

Para além destes, havia ainda Octávio de Menezes e a afilhada da vítima, mas nenhum deles passou a noite em casa, pelo que não estavam lá na hora do crime.

Resta-nos Marguerite de Menezes, que teve oportunidade para cometer o crime. Era ela a única pessoa, para além da vítima, que se encontrava naquele piso. Ela residia há pouco tempo em companhia do cunhado e mesmo nesse pouco tempo quase não tivera oportunidade para contactar com ele, pelo que não sabia que ele era canhoto, nem que detestava o fumo do tabaco.

O facto de não ter sido encontrado o registo da arma leva-nos a concluir que esta havia sido transportada para Portugal pela assassina. Ninguém ouviu o tiro, o que é natural pois a sala onde foi disparado encontrava-se insonorizado pelas estantes cheias de livros e pelos pesados reposteiros nas janelas. O motivo para praticar o crime é óbvio: destruir o testamento para que o filho fosse o herdeiro, só que não teve sorte. Foi facilmente descoberta e aquele papel não era o testamento definitivo.

© DANIEL FALCÃO