Autor Data 17 de Outubro de 1999 Secção Policiário [431] Competição Prova nº 8 Publicação Público |
O CASO DA ESTÁTUA ASSASSINA Severina No dia 28 de Fevereiro
deste ano, que calhou a um domingo, ao fim da manhã, ainda antes da hora do
almoço, após o regresso da igreja da próxima vila, onde às 10h30 se tinha
rezado a missa do 30º dia pelo eterno repouso de D. Cândida Marques, Antero
Marques, (o marido da defunta), ao chegar a casa, quis isolar-se: foi sentar
no seu cadeirão de ferro pintado, no lugar das sestas estivais, ao ar livre,
apesar de não fazer calor, na parte lateral esquerda da moradia e perto da
esquina fronteira. Alfredo Maia, o seu empregado, que o procurara por toda a
casa, foi encontrá-lo quase desfeito por uma estátua de pedra caída do
beiral. Pensou-se que fora acidente. A força policial apareceu e
tudo foi analisado. À volta do corpo, e por perto, só pastas de sangue e
bocados de pedra mutilada. Mas o agente Maurício quis ir ver por que motivo a
estátua tombara naquele ângulo, que não lhe parecia correcto. Levando dois
guardas, subiu pela escada interior, com raiz no átrio entre a sala e a casa
de jantar, até ao sótão-mansarda, com duas janelas; chamou-lhe logo a atenção
a do lado esquerdo, limpa de pó (mesmo o pó do peitoril tinha desaparecido),
o que não acontecia com a da direita, embora ambas fossem iguais. Saídos ao
telhado, notaram que a base da estátua – decerto em tão mau estado como as
das outras três figuras assentes na frontaria – fora escavada da argamassa
inicial, espalhada aos lados, com o auxílio de uma das telhas avulsas de
reserva para substituições, lascada e posta de parte. O espeque de segurança
da estátua, enferrujado e ressequido, tinha-dobrado para a direcção em que tinha
tombado a figura; e uma telha quebrada onde um pé se firmou para dar o
empurrão, não deixava dúvidas. O agente Maurício concluiu
que fora crime e começou a tomar nota das respostas às suas perguntas. Antero Marques, chefe de
família, professor aposentado a perfazer 67 anos (à justa), herdeiro de
gerações de gente abastada, era homem estimado, bem constituído, de boa
figura; tinha sido um duplo crime o estado em que a morte o deixara. Não se
lhe reconheciam sérios inimigos. D. Matilde, a sua irmã, uma
senhora viúva, mais nova que ele cinco anos, sucedera à cunhada na ordem
doméstica e na orientação do governo da casa. Após a missa, preocupada pela
finalização do almoço e inquieta, sem confiar de todo nas duas moças de
cozinha (se teriam cumprido as suas recomendações), mal entrou em casa seguiu
para a cozinha – ao fundo e à direita da moradia. Maria Rita, filha de
Matilde, de 22 anos, funcionária na repartição de finanças da vila,
acompanhara a mãe, a seu pedido, mal dando atenção ao namorado, que as trouxera
no carro. Catarina Vieira, irmã de
Cândida, sempre muito ligada a ela, a quem tratou na derradeira doença, vivia
com o marido numa vivenda menor, de construção mais recente, anexa à
residência principal da propriedade (com a qual tinha ligação interna),
situada à direita – do lado oposto ao “local das sestas estivais” quando se
armava o toldo. De volta da missa, acompanhou o filho à sua habitação e
procurou Matilde para a ajudar no que fosse necessário. Jacinto Vieira, marido da
cunhada de Antero Marques, seu encarregado de confiança, entrou com ele na
porteira de acesso ao caminho, ainda não eram 12h15. Mas o padre João e o dr.
Geraldo Alves vinham logo atrás e ele ficou a recebê-los, encaminhando-se
para o escritório, logo ali à entrada, à direita do átrio, e perdendo Antero
de vista. Os três homens permaneceram juntos até que o padre, escusando-se,
se ausentou. Gonçalo Vieira, filho de
Catarina e Jacinto, estudava Direito numa grande cidade. Não estivera
presente no funeral da tia Cândida, sua madrinha. Nesta manhã, encontrara-se
com os pais na vila, antes da missa, e acompanhara a mãe quando seguiram para
casa. Deixou o saco de viagem e foi conversar com D. Matilde e com a mãe, e
pouco tempo esteve afastado da cozinha. O dr. Geraldo Alves, notário
com cartório na Vila, consultor e amigo de Antero Marques, ficara
profundamente chocado com a espécie de morte do seu cliente. Não vira nada de
anormal, nem chegara a falar com ele. Pôs-se ao dispor da polícia para fazer
declarações com certa gravidade. Se fosse necessário. Julião Lemos, 24 anos,
empregado no cartório do dr. Geraldo, noivo de Maria Rita, não dera por nada.
Fisicamente indisposto com o aspecto do cadáver (que ainda vira antes de ser
tapado), lamentou a morte do homem, que conhecera nos últimos dias, no
cartório. Convidado para o almoço pela mãe de Maria Rita, a quem dera boleia,
esteve sempre só, farto de estar sala, já arrependido de ter aceite o
convite. Alfredo Maia – homem útil,
responsável por pequenos grandes serviços, que quase sempre resolvia bem, era
mais que criado, ou motorista, sem chegar a secretário – dificilmente prestou
declarações, ainda emocionado. Dera uma ligeira limpeza ao carro e só entrara
em casa às 12h25. Passara pela cozinha (quando o padre saía do escritório), agradando-lhe
que o almoço estivesse atrasado. Só reparara no nível de gasolina (e o patrão
era exigente nesse aspecto) quando acabara a limpeza – estava na reserva.
Procurou-o logo, foi ao quarto dele, andou por todo o lado, do rés-do-chão ao
primeiro andar. Na cozinha, não sabiam onde estava, e não viu outra pessoa
que lhe desse indicação. Pensou, então, ir à vila atestar o depósito,
começando por se encaminhar para a porteira; mas sem vontade, por não ter
avisado o patrão, logo nesse dia, acabou por voltar atrás. Eram 12h45 quando
deparou com o patrão maltratado. Padre João, visita habitual
da família, viera naturalmente depois de oficiar a missa de sufrágio. Devido
a urna necessidade fisiológica fora forçado a sair de um convívio agradável… Em resumo: os dados
recolhidos não passavam de – uma telha partida e outra lascada e abandonada
junto à base da estátua assassina. Porque as impressões digitais não eram
certas. Chegara o momento de ouvir o dr. Geraldo Alves. “No primeiro ano bissexto
da terceira década deste século, a 29 de Fevereiro”, começou o notário,
“nasceu Antero Marques…” “No primeiro ano bissexto
da sexta década do mesmo século, nasceu Fernando Marques, filho de Antero, a
29 de Fevereiro; veio a falecer no segundo ano bissexto da oitava década do
século, também a 29 de Fevereiro.” “Desde que se conhece as
suas datas de nascimento (e óbito), os indivíduos do sexo masculino, do ramo
materno da família de Antero Marques, sempre haviam nascido (e morrido) a 29
de Fevereiro.” “Todos morreram de morte dada
por Deus.” “Esta tradição da família,
só conhecida pelos consanguíneos do mesmo ramo, talvez viesse a conhecer o
extermínio. Ou fosse passível de renascimento. Agora, morto Fernando e
Antero, só D. Matilde a conhece. E eu, como confidente.” “Tendo D. Cândida os dias
contados, sendo o último varão dessa estirpe, sem descendência viva, Antero
fez testamento no meu cartório, beneficiando a família – como era sabido que
faria. Mais tarde, já depois do funeral, fez novo testamento, aditando-lhe condições.
Documento que assinou sem demora perante duas testemunhas.” “Se a sua morte fosse
natural, fosse qual fosse a data, o primeiro testamento seria válido, e o
segundo destruído.” Se não fosse “morte dada por Deus e houvesse provas de
crime, era sua vontade que vigorasse o segundo testamento. Então, D. Matilde
seria herdeira única, apenas com determinado legado à igreja.” “Portanto, Antero Marques
não morreu de morte natural, embora pudesse ter passado por acidente. Cabe à
polícia apontar o criminoso.” Maurício precisou pensar
seriamente. E talvez sem o depoimento do notário, não tivesse conseguido
apanhar a ponta da meada. É o segundo testamento que
irá vigorar. Para mim, essa é a única certeza neste caso que não sou capaz de
decifrar. Alguém me quer ajudar? Qual foi o móbil do crime? Quem pode beneficiar com a
morte de Antero Marques? Em suma: quem é o
criminoso? |
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© DANIEL FALCÃO |
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