Autor Data 20 de Novembro de 2016 Secção Policiário [1320] Competição Campeonato Nacional e Taça de
Portugal – 2016 Prova nº 9 (Parte I) Publicação Público |
Solução de: NUM BAIRRO POPULAR Verbatim Não
encontramos motivos para suspeitar dos vizinhos do primeiro direito nem dos
sexagenários do rés-do-chão esquerdo e da sua neta de 11 anos. Já não podemos
dizer o mesmo quanto a Ernesto Vigário, filho da vítima, e à sua ex-mulher D.
Patrocínio. Ambos
iriam a casa da D. Antónia com grande à vontade. Um e outro também exibiam
arcaboiço para a dominar e estrangular. D.
Patrocínio poderia ter ido a casa da vítima entre as 21:30 e as 23:30 e tê-la
liquidado. Também lá poderia ter ido depois do jantar, como disse, mas antes
do assassino. Este seria então Ernesto Vigário que, depois das 21:30, teria
entrado e saído sem ninguém dar por isso. Era a hora de ver telenovelas. Em
todo o caso, o filho da vítima não produziu declarações comprometedoras. Mas
D. Patrocínio disse ou omitiu coisas que nos levam a desconfiar dela: 1
- Afirmou não ter observado sinais de qualquer perturbação quando saiu às
seis e meia. Ora, perguntamos nós, que indícios de perturbação admitia ela
poderem ter ocorrido e por que motivo? 2
- Lamentou o facto de a ex-sogra estar muito feliz sem saber que a iam matar.
O que poderá ter levado D. Patrocínio a concluir que a D. Antónia fora
assassinada? A voz corrente, naquela tarde, era a de que a senhora tinha sido
assaltada em casa e estava no hospital. Ela própria se apresentou com ar
choroso por ter sabido que a ex-sogra fora hospitalizada. 3
- Ao referir-se à grande felicidade frustrada de D. Antónia, não mencionou a
origem dessa felicidade. Por isso, somos levados a admitir que a causa de tão
grande felicidade passou a ser algo que D. Patrocínio considerou dever
esconder. 4
- Deu a entender que, se pudesse ter ficado com a D. Antónia a ver televisão,
talvez nada de mal tivesse acontecido. Na circunstância, e sintomaticamente,
não mostrou qualquer receio pela violência de que também poderia ser alvo. 5
- Lançou suspeitas veladas sobre o ex-marido, referindo-se ao facto de ele
ter a chave da casa, possuir mãos suficientemente fortes para estrangular um
cavalo, ser muito ruim para a mãe e esta não gostar de estar dependente do
filho. A extensão destas suspeitas, e em particular uma delas, tratada a
seguir, fazem-nos desconfiar mais de quem as lançou de uma só vez do que da
pessoa a quem foram dirigidas. 6
- Falou, a despropósito, das suas fortes mãos e também das do ex-marido,
essas capazes de estrangular um cavalo. Por que motivo se lembrou a D.
Patrocínio de mencionar esta particularidade de ambos? E por que motivo terá
feito referência ao acto de estrangular, algo a que foi sujeita D. Antónia,
mas que a sua ex-nora, em princípio, ignoraria? 7
- Não mencionou o telefonema feito por D. Antónia às 19:10. É verdade que não
tinha que fazê-lo. Mas ao referir-se às suas boas relações com a ex-sogra,
mencionando o facto de depois de jantar ter lá ido dar um beijinho, leva-nos
a admitir que só não aludiu a esse telefonema por ele respeitar a algo que
quisesse ocultar. Ora,
isto tudo leva-nos a colocar a hipótese de D. Patrocínio estar sujeita a uma
recordação de que não se conseguia livrar e, relativamente qual, fazia um
esforço para esconder uma parte. Podemos então imaginar ter acontecido o
seguinte: “Às
19:10 D. Antónia telefonou à ex-nora a dizer-lhe para a visitar antes de se
deitar. D. Patrocínio apareceu uns dez minutos antes das nove, a tempo de
voltar para casa e ver a telenovela da noite. D. Antónia, toda contente,
mostrou-lhe um recibo de apostas no Euromilhões, uma delas com cinco números
certos. Acrescentou que ninguém sabia daquilo para além das duas. A ex-nora,
achou que era de manter segredo e disse que ia a casa verificar o montante do
prémio. Este, retirado o imposto, ascendia aos cinquenta mil euros, uma
maquia que lhe vinha mesmo a calhar. Antes de descer começou a congeminar uma
maneira de se apoderar do recibo. Lembrou-se de uma gravata nas costas de uma
cadeira na sala de D. Antónia. Era um bom instrumento para o caso de ter de
acabar com a velha. A conversa que se seguiu mostrou que nunca ficaria com o
documento das apostas sem matar a ex-sogra. Foi, então, por detrás do sofá e,
com um golpe bem rápido, passou a gravata à volta do pescoço da senhora, não
lhe dando sequer tempo de gritar. Apertou, durante alguns minutos, até ela
própria ficar roxa. Abandonou depois a casa de D. Antónia sem ruído. Pouco
passava das dez da noite.” Esta
história explica os factos e elucida as declarações de D. Patrocínio. Pode
ter algumas variações mas importa que abranja tudo o que é essencial. Mas
não se encontrou qualquer prova incontornável contra D. Patrocínio e muito
menos contra as outras pessoas. Flávio Alves estava ciente disso. Note-se
que D. Patrocínio, mais tarde, poderia desdizer-se e afirmar, por exemplo,
que sempre julgou que D. Antónia estaria morta, pois, de outro modo,
saber-se-ia para que hospital teria ido e o filho não deixaria de ter corrido
para lá… Haveria,
contudo, um recibo do Euromilhões premiado e surripiado pelo assassino. O
móbil do crime poderia muito bem ter sido esse. É altamente improvável que D.
Antónia tivesse guardado um talão de caixa abandonado por alguém. Flávio
Alves ponderava a busca imediata do recibo, possivelmente na posse de D.
Patrocínio, ou a paciente espera da reclamação dos prémios. Em
qualquer caso, urgia dispor do mandato de busca à casa e pertences de D.
Patrocínio. “Meu caro Dias - dizia
Flávio Alves – isto nem sempre é tão simples como parece.” |
© DANIEL FALCÃO |
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