Autor

Virmancaroli

 

Data

2 de Março de 1990

 

Secção

O Detective - Zona A-Team [92]

 

Competição

Torneio Sintimex

Problema nº 3-B

 

Publicação

Jornal de Almada

 

 

AS MENTIRAS…

Virmancaroli

 

Montijo, 24 de Dezembro do ano passado.

O inspector Virgílio olhou primeiro para o relógio e em seguida para a janela. E, como chovia e ainda eram nove horas da manhã, decidiu acender um charuto.

Claro que nem as horas nem a chuva tinham a ver com o charuto, mas o inspector fez de conta que não sabia isso. Só sabia que o antipático médico dr. Mendes o proibira de fumar, excepto em casos muito especiais.

Muito bem!

Só nove horas da manhã e já chovia… Não seria isso um caso muito especial?

À terceira fumaça carregou no botão vermelho que havia na parte inferior do tampo da secretária. O funcionário Oliveira meteu a cabeça pela greta da porta e perguntou:

– O senhor inspector tocou?

– Toquei. Mande-me cá o rapaz.

A cabeça desapareceu e pouco depois entrou um rapaz. O seu aspecto era o quo se costuma chamar desleixado. O mesmo se podia dizer das suas maneiras. Sem esperar que o convidassem, instalou-se numa cadeira e resmungou:

– Quanto tempo é que ainda tenho de andar para aqui, às voltas de um lado para o outro? Tenho mais que fazer!

O inspector puxou outra fumaça, com enorme delícia, e depois disse:

– Bom dia, senhor Guerra.

José Guerra pestanejou, perplexo.

Em seguida respirou fundo.

– Vou dizer-lhe uma coisa – começou então.

O inspector Virgílio atirou uma espessa nuvem de fumo na sua direcção e apontou para ele com o charuto.

– Eu ainda estou a falar, meu rapaz. Você foi visto ontem à noite, às vinte e três horas e trinta e cinco minutos, a sair… – Virgílio tossiu ligeiramente – … Por uma janela do número dois da Rua das Papoilas. Não se pode dizer que fosse uma saída muito cómoda, como, aliás, você próprio terá verificado. Além disso, a casa pertence a um tal senhor Lameira, que é fabricante de esferográficas. Ora, o senhor Lameira pode entrar e sair o dia inteiro pela janela da sua residência. Mas você não se chama Lameira, meu rapaz, você chama-se Guerra…

Depois deste longo exórdio, o inspector entregou-se de novo ao prazer do seu charuto. E nem sequer pestanejou ao ver o seu interlocutor dar um salto da cadeira e cerrar os punhos.

– Foi um equívoco, senhor inspector. Eu queria fazer uma surpresa ao sr. Lameira. Nós somos amigos.

Durante uns três ou quatro minutos Virgílio entreteve-se a atirar argolas de fumo para o ar. Por fim, disse:

– Ah!…

E algum tempo depois repetiu:

– Ah!… Faz sempre as suas visitas pelas janelas das residências?

– Acabei de dizer que lhe queria fazer uma surpresa… Tentei em vão explicar isto ao seu funcionário, mas ele é de compreensão lenta.

– Ah, sim? Estes funcionários… Queria, então, fazer uma surpresa ao sr. Lameira?

Exactamente!

– Sim, sim…

– Não me passava pela idéia que estivesse fora e, por isso, entrei. Mas quando vi que não havia lá ninguém, saí imediatamente. Nem sequer cheguei à cozinha… Foi só isto.

– Só isso?…

– Precisamente isto.

O inspector fez um sorriso simpático.

– Essa versão é curiosa… Muito curiosa… Pelo que li aqui, você é estudante.

Exactamente, senhor inspector.

– O que é que estuda?

Guerra encolheu os ombros.

– Neste momento fiz uma interrupção. Mas estudo línguas.

– Que línguas? Mortas ou vivas?

– Mortas ou vivas? O que é isso? Estudo línguas estrangeiras, claro!

– Claro… – Virgílio sacudiu cuidadosamente a cinza do charuto antes de prosseguir. – Quando foi que soube que o sr. Lameira estava fora?

– Oh, há três dias. E foi por acaso.

– Ainda sabe que horas eram quando entrou lá em casa?

Guerra respondeu como se a honestidade fosse o mais forte dos traços do seu carácter.

– Claro! Eram dez horas em ponto. Os sinos tocavam nessa altura, e quando eles tocam não há ninguém que não os ouça!

– Hum, Hum… – Fez o inspector. – Uma última pergunta, senhor estudante: o agente Matos diz que você deixou o frigorífico da cozinha aberto. É verdade?

José Guerra abanou a cabeça com veemência.

– O agente Matos enganou-se ao dizer isso, senhor inspector. Por acaso sei muito bem que o fechei!

Óptimo! – Disse Virgílio muito satisfeito. – É isso mesmo. E agora pode ir-se embora.

– Posso ir-me embora?

– Sim, para a cela. Agora já sei que você é pura e simplesmente um gatuno. Sabe? Mais depressa se apanha um mentiroso que um coxo.

– Mentiroso, eu?

– Sim. Apanhei-o a mentir, senhor estudante Guerra. E por várias vezes! Devia ter vergonha.

E, pela segunda vez, nessa manhã, o inspector Virgílio premiu o botão vermelho colocado na parte inferior do tampo da sua secretária.

 

Pergunta-se:

1) – Quantas vezes mentiu José Guerra?

2) – Quais foram essas mentiras?

 

SOLUÇÃO

© DANIEL FALCÃO