Autor Data 24 de Maio de 1957 Secção Competição Problema VIII Publicação Flama [481] |
QUAL DOS TRÊS!… Vitorino F. Luz – … Mantenha
toda a gente longe do local… Depois de
murmurar a frase ao telefone, pousou-o no descanso. Amachucou o cigarro no
cinzeiro atulhado e, agarrando o chapéu e o sobretudo cinzento, exclamou: – Chamem o
médico-legista, dois agentes e o carro-patrulha. Desceu até ao
jardim do Torel e aí ficou a olhar o céu nublado
ameaçando nova remessa de chuva, os telhados do casario alongando interminàvelmente, sobre os quais, ao longe, se
distinguia o jardim de S. Pedro num contraste verde e, os reclames
multicolores de «néon», prontos a iluminarem-se mal descesse a noite. O
carro-patrulha e os auxiliares do inspector
chegaram quase simultâneamente. Silenciosos, os
homens limitaram-se a espiar o rosto inexpressivo do seu chefe que se sentava
já ao lado do motorista. – Rápido para
a Avenida de Cabo Ruivo. Puxou uma
fumaça do cigarro, enquanto através do retrovisor dava uma espiada aos rostos
eivados de curiosidade, dos seus ajudantes. – Bem, meus
amigos – exclamou disposto a elucidá-lo – acaba de morrer um tal Carlos
Proença, homem de sociedade. … Morreu, há
pouco. Este facto, que poderia ter sido uma coisa normal, tem o poder de não
ter acontecido naturalmente… O médico
legista sorriu num cochicho, admirado com a loquosidade
de Oliveira, mas, meneou a cabeça ao ver o carro abrandar à marcha ordem dele
e parar junto a uma luxuosa vivenda. Saíram em
silêncio. Nos rostos, de novo afivelada a máscara fria da argúcia que, ao
primeiro olhar dum leigo, se assemelha a imbecilidade. A senhora que
lhes abriu a porta, devia ter cerca de trinta e oito
anos. Era baixa e franzina, mas bonita, embora tivesse o rosto lívido de
tristeza. – Inspetor
Oliveira? – Exactamente… a srª de Garcia? – Eu própria…
entre por favor. Oliveira
entrou, com um sorriso satisfeito. Talvez pela primeira vez na sua vida,
encontrava um caso do qual conhecia todos os personagens, com quem lidara já,
nas suas «expedições» através da alta sociedade Lisboeta. Rogério
Garcia, cuja esposa abrira a porta ao inspector,
era algo mais velho que sua cara-metade. Vestia um fato de bombazina
castanha, sobre uma camisa aos quadrados, grossa e berrante: as calças eram
de flanela escura e, nos pés, tinha umas botas grossas, algo sujas… talvez
ainda com a lama da última caçada. A seu lado estava Cristóvão. Tronco largo, cabelo curto,
nariz achatado como o dum «boxeur», pele morena e um bigode irritante, a
tremelicar sobre o lábio superior, sempre que falava. Vestia talvez
com mais esmero mas as botas estavam, talvez também mais sujas. Ao notar o
olhar do inspector sobre si, mimoseou-o com um
rodar de olhos escarninho, o qual Oliveira pareceu
ignorar. Um pouco mais
atrás, estava Octávio Serrano. Vira-o também algures num local elegante e
sabia até que estava para casar breve. Esta ideia tê-lo sorrir ao fitar o
jovem. Não era decerto uma cara que ficasse bem a uma pessoa, a qual diziam
ter entre mãos a felicidade. Os olhos
perdiam-se entre as olheiras cavadas no rosto; eram olhos tristes, fitando um
ponto indefinível. Tinha as mãos enfiadas nos bolsos das calças mexicanas,
negras, com grandes pontos brancos e algumas nódoas antigas a «embelezá-las».
A sua atitude,
embora parecesse estudada, era de descontração. O traje descomposto casava-se
porém perfeitamente com ela, com o tempo e com a espécie de passatempo a que
ia dedicar-se naquela manhã. Nos pés, umas botas também mexicanas, lustrosas
e bem talhadas, pareciam fazer o tamanho deles mais
delicado … Oliveira
pigarreou forte, deu meia volta, acendeu o cigarro e interpelou: – Onde está o
corpo? – Na casa da
arrecadação –. Respondeu a snrª de Garcia,
encaminhando o inspector até ao terraço das trazeiras. – É aquela! – indicou
com o dedo uma casinha branca com uma única janela fechada, e uma porta verde
semi aberta. O inspector lançou um olhar à casa, depois, volveu-o
demoradamente para o terreno baldio, sem sombra de vegetação, que a cercava. Do lado
esquerdo podiam distinguir-se umas pegadas leves, feitas por sapato raso de
senhora, que iam até à janela e voltavam depois um pouco mais fundas e
espaçadas: como se, quem quer que fosse, tivesse corrido. Daquele ponto, no
qual ele se encontrava agora, até à porta havia umas pégadas
largas, algo disformes, pronunciadamente vincadas no calcanhar… mas essas,
tinham um único sentido, dali para a arrecadação. Nenhum
vestígio se lobrigava mais. Dir-se-ia que a morte voara até à arrecadação, no
seu instinto de vingança! – Venha comigo
– exclamou para o médico-legista, enquanto uma ruga profunda lhe cruzava a
testa em todo o comprimento. Procurando
sempre desviar-se das primitivas pègadas, chegou à
porta e entrou, sem hesitar. Quase no meio
da arrecadação jazia Carlos Proença, com um arpão de pesca submarina a
atravessar-lhe o peito. A espingarda de ar comprimido que a desferira estava
caída, a seu lado, envolvida por aquele mar de sangue que alagava o sobrado
de cimento, tingia quase por completo as suas calças de mescla cinzenta e
chegava mesmo ao cano das botas grossas que trazia calçadas. O inspector passou ao seu lado, abeirando-se da janela
poeirenta e espreitou para o exterior, esperando a opinião do médico que se
abeirava do cadáver. Morreu entre
as sete e as oito da manhã… nada de impressões, na parte visível da
espingarda. Meneou a
cabeça desalentado. Não estava certamente a tratar com um leigo. Nenhum
vestígio no teatro do crime… e, contudo, Oliveira sabia que havia qualquer
elo a ligar toda aquela cadeia de inconcebíveis. Saíu. À porta, deu alguns passos em círculo. Parou, analisando depois as
suas pegadas e as do morto. Um sorriso largo em seu rosto quando se ergueu. – Dr. Armindo, vamos adivinhar qual dos três? O médico
sorriu-se também, vendo a ruga de preocupação desaparecer da testa do amigo. Peço-vos
senhores – exclamou o inspector acendendo um novo
cigarro e encostando-se plácidamente ao rebordo da
mesa – que me digam a verdade… cada mentira servirá, para seleccionar
um criminoso que esta entre vós… e, podeis crer, uma confissão é sempre uma
atenuante. A srª – interpelou,
vendo que ninguém falava. – Ontem à
noite – principiou a srª de Garcia, deitando um
olhar de censura ao marido – fui ao aeroporto despedir-me duma amiga que
partiu para Paris. Carlos que era também seu íntimo amigo,
ofereceu-se para nos levar lá. Antes de partirmos, meu marido disse--lhe que
não tinha cartuchos para a caçada de hoje. Carlos prometeu ir buscá-los hoje
de manhã. Quando regressamos, era um pouco tarde e todos dormiam. Fez-se
escarlate, olhou o marido de novo e depois o inspector
que fitava o solo… – … Hoje de
manhã, como já estivessemos todos prontos e faltava
o Carlos, lembrei-me de o ir procurar à arrecadação. Espreitei pela janela. O
que vi deixou-me petrificada… corri para aqui e telefonei-lhe. Só depois
informei os meus amigos. – Sr. Rogério
Garcia, onde esteve entre as sete e as oito horas? – Embora
estivesse na cama, não o posso confirmar. Minha mulher levantou-se às sete e
pouco, indo depois tomar banho. Eu, lavei-me e
vesti-me no quarto, do qual não saí. Minha mulher, durante quase todo esse
tempo esteve no quarto de banho. Não posso confirmar o que digo… mas
garanto-o. – Eu –
exclamou Octávio Serrano fitando pela primeira vez o inspector
– estive a dormir até às oito e meia, hora a que o Rogério me foi acordar. – Não está
para casar com a menina de M…? – Interpelou despreocupadamente Oliveira. – Sim! – fez o jovem baixando de novo o olhar. – Que sabe a seu
respeito? – Oh! Coisas
sem importância. Octávio socou
a mão direita na esquerda e monologou algo entre dentes que ninguém chegou a
perceber. – Sr.
Cristóvão, a mesma pergunta. Será por acaso a resposta igual? – Acordei
deviam ser umas seis e meia. Ouvi quase a seguir o Carlos sair do quarto e baixar
ao andar térreo. Depois, ouvi abrir-se a porta dum quarto e a da casa de
banho. «Nada mais. O
barulho do chuveiro era demasiado para que pudesse ouvir qualquer outro som.
Adormeci de novo. Mas não creia que deploro aquela morte – acrescentou
fazendo uma careta e apontando com o queixo na direcção
da arrecadação – … o sr. sabe
muito bem, minha mulher está nas Carmelitas e não o estaria sem ele». O inspector afastou-se da mesa. Pelo sorriso indefinível
que lhe iluminara a cara, Armindo notou que achara algo. Oliveira
chamou um agente e pô-lo de guarda no exterior da única porta da sala.
Depois, encaminhou-se para a janela. – Estou de
costas e vou convidá-los a participarem comigo num interessante jogo. Cada um
dos senhores toma um lugar bem ao meio das quatro paredes da sala, com a cara
voltada para a parede. Um dos senhores, o culpado, que eu já poderia apontar
a dedo, abra a porta e saia. Os meus agentes levá-lo-ão até ao carro. «Creio que
evitará os olhares dos seus amigos e, prometo não os deixar voltar-se antes
do criminoso sair». Reinou
silêncio. Ouviu-se depois um arrastar de pés. Então, voltou-se. Junto à porta
estava alguém, a quem fez sinal para sair. Satisfeito,
puxou um novo cigarro e começou a fumá-lo, olhando a parte trazeira das indumentárias das três pessoas que
continuavam na sala. … Dos três,
escolhera um! PERGUNTA-SE: Quem foi o
criminoso? Quais os
pormenores que denunciaram o culpado?
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© DANIEL FALCÃO |
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