Autor

Xek Brit

 

Data

6 de Fevereiro de 1987

 

Secção

O Detective [17]

 

Competição

1ª Supertaça Policiária - Cidade de Almada

Problema nº 7

 

Publicação

Jornal de Almada

 

 

EXÍCIO E ARCANO

Xek Brit

 

A Primavera estava no início, e encontrava-me a passar uns dias de descanso e lazer com um amigo de muitos anos, o Mário Zamith, credenciado Tanatologista. Este possuía uma pequena casa de campo num singular lugarejo isolado da civilização, muito adequado ao seu temperamento melancólico, para onde gostava de se retirar sempre que a sua vida profissional o permitia. Não foi, portanto, sem uma certa dose de surpresa, que recebi este seu amável convite.

Das janelas da pequena casa caiada de banco, situada no alto de um arborizado promontório, dominávamos com o olhar todo o sinistro semicírculo daquela baía, antiga armadilha mortal para muitos barcos, com a sua orla de penhascos negros e recifes traiçoeiros, sobre os quais inúmeros navegadores do passado haviam encontrado uma trágica morte. Graças à brisa setentrional que ali sopra, a baía parece plácida e abrigada, convidando o pequeno barco acostado pelas tempestades a procurar repouso e protecção. O marinheiro velho e experimentado evita aproximar-se desse lugar maldito. No outro extremo da baía, bem no alto do promontório principal, impõe-se o velho farol ao cuidado do Joaquim «Ronca», na sua missão de alertar os mais incautos.

À nossa volta, a paisagem afigurava-se tão tétrica quanto a do mar. Era uma região de charnecas ondulantes, desertas e de cor pardacenta, onde de longe a longe surgia um campanário a assinalar uma aldeia próxima. As praias não existiam nas proximidades, e os turistas eram ocasionais. Em todas as direcções, sobre estas charnecas ondulantes, despontavam vestígios de antigas povoações litorais e ruí-mas isoladas dispersas pelo interior, dando ao local uma atmosfera antiga de povos remotos e culturas perdidas.

O fascínio e mistério desse lugar, exerciam grande influência sobre o meu anfitrião, o que me lavava a acompanhá-lo em longos passeios e solitárias meditações pelos campos áridos.

Frequentemente fazíamos uma visita ao farol para trocarmos palavras amigas e ouvir o velho Joaquim contar as lendas da região, sempre recheadas de multo mistério e superstição.

Naquela tarde ventosa, estávamos a iniciar o nosso passeio quando, subitamente, o vente trouxe até nós o som de três estampidos sucessivos vindos do lado do farol.

De imediato, e sem que para tal fosse necessário trocar palavra, começámos a correr nessa direcção, tarefa dificultada pelo terreno irregular e pela ventania que nos levantava o cabelo e enregelava a face. Os nossos temores começavam a confirmar-se pois não se avistava o perfil esguio do velho Joaquim com o seu boné de marinheiro e o cachimbo fumegante, que habitualmente nos vinha receber ao exterior. Percorridos que foram os cerca de 400 metros que nos separavam do farol, contornámos este e deparámos com a porta aberta. À nossa volta não avistámos ninguém e entre o barulho do vento e o rebentar das vagas contra a falésia só o piar das gaivotas se fazia ouvir. Subimos de imediato a escada em caracol que nos levava ao piso de cima, onde confirmámos os nossos fundados receios. O corpo inerte do velho faroleiro estava sentado na sua cadeira habitual, braços pendentes e cabeça descaída para trás. O seu samarro cinzento puído pelos anos, estava desabotoado assim como a camisa de flanela axadrezada, deixando entrever os três orifícios arredondados que o atingiram no tórax. A arma, uma MAUZER 6,35, que já conhecíamos de visitas anteriores, encontrava-se caída no chão junto aos pés do morto, com duas cápsulas próximas estando uma terceira cápsula à esquerda da cadeira, junto ao boné sebento do infeliz Joaquim.

Atendendo às características e localização dos ferimentos, a morte fora certamente imediata. Após uma breve e metódica observação do cadáver, pediu-me para ficar junto deste sem mexer em nada, enquanto ia rapidamente a casa buscar a sua maleta para poder concluir o seu exame.

Enquanto aguardava o seu regresso, observei atentamente a divisão onde me encontrava, bem como o pobre Joaquim que não voltaria a impressionar ninguém com as suas narrativas tenebrosas. Numa mesa próxima, além duma bússola, duma lanterna e de alguns livros usados, era visível o cachimbo fumegante que me habituara a ver permanentemente nos lábios do faroleiro. Junto à mesa estava ligado um aquecedor, que fazia o possível para disfarçar a desagradável temperatura ambiente. O rosto do morto apresentava uma expressão serena, sem sinais traumáticos. Os três orifícios precordiais localizavam-se aproximadamente nos 4º e 5º espaços intercostais esquerdos médio-claviculares, apresentando à sua volta, algo disfarçada pela presença de sangue ainda não completamente coagulado, uma zona escura levemente apergaminhada, de poucos milímetros de largura, próximo do qual se podia observar a pele ligeiramente queimada e com vestígios de fumo.

A observação do corpo por trás, permitia ver dois largos orifícios que se exteriorizavam através do samarro, bem no centro do dorso, entre as omoplatas.

Entretanto regressara ara o «especialista», de nariz vermelho, respiração ofegante e a maleta na mão. Assim que se recompôs, abriu a maleta de onde retirou uma lupa, iniciando um exame minucioso da zona atingida. De seguida, pegou num pequeno quadrado de gaze com o qual limpou a zona à volta do bordo de um dos orifícios; sobre os detritos ensanguentados deitou, por meio duma pipeta, algumas gotas que verifiquei se tratar dum soluto de difenilamina em ácido sulfúrico concentrado, tendo notado que se formou, de forma algo lenta, um precipitado azul esverdeado. Seguidamente lavou as zonas circundantes aos orifícios, voltando a examiná-los em pormenor.

Durante estas operações só uma vez me dirigiu o olhar, e a parte umas esporádicas exclamações, não emitiu qualquer palavra.

Após ter examinado os orifícios no dorso, iniciou a observação das duas mãos. Na mão direita conseguia adivinhar-se alguns detritos, pelo que voltou a repetir a operação efectuada anteriormente, tendo o precipitado, desta feita, passado de imediato a azul esverdeado. Na face externa do indicador direito observava-se uma ligeira contusão, não havendo vestígios de sangue em ambas as mãos.

Finalmente arrumou cuidadosamente a sua maleta, e após umas breves palavras, acordámos em ir até casa e tentar comunicar a ocorrência às autoridades.

Já no ambiente quente e acolhedor da nossa casa e na companhia dum reconfortante «Scotch», tivemos uma troca de impressões sobre o caso, que se revelou esclarecedora e conclusiva.

E agora, vou terminar pedindo a opinião dos leitores sobre este caso apresentado, esperando que seja coincidente com a nossa, e que os diversos pormenores que os levaram a essa conclusão, sejam suficientes.

 

SOLUÇÃO

© DANIEL FALCÃO