DESAFIOS

POLICIÁRIOS

TORNEIO 2000

Prova nº 4

 

 

O ASSASSINATO DO AMADO MESTRE

Autor: Paulo

 

A vivenda erguia-se solitária num bairro residencial construído nos anos 50, onde algumas das casas se encontravam já desabitadas, à espera de serem demolidas, para em cima se erguerem os elevados vultos dos prédios de apartamentos, que já vinham estugando o passo ao fundo da rua.

 A Narciso Morais fora atribuída a missão de ir visitar a mansão e fazer as perguntas que achasse necessárias aos moradores, com o objectivo de esclarecer o crime ocorrido na última noite. No bolso, levava rascunhadas algumas notas escritas pelo seu colega que estivera de piquete e que já visitara o local do crime.

Na casa vivia uma seita, que misturava astrologia e religião numa miscelânea incompreensível para qualquer não iniciado. A opinião de Narciso Morais acerca da astrologia não era a mais lisonjeira. Ele, que era um astrónomo amador, não aceitava a crendice associada aos objectos que gostava de observar: estrelas, planetas, cometas, etc.

A vítima fora o guia espiritual da seita, Professor Sirius, Tomé da Conceição Casquinha de seu nome, que aparecera degolado num banho de sangue perto da última meia-noite. Fora encontrado nesse estado pelos seus três seguidores, Belmiro Torres, Aurora Cardeal e Pedro Reis, residentes como ele naquela casa.

 Transpirando sob o sol de Julho, Narciso Morais abriu o portão do jardim, apenas encostado, e entrou. Ao toque da campainha, a porta da casa foi aberta com rapidez por um jovem de face ossuda, sem carne, que lhe dava um aspecto mais velho do que na realidade teria. Relembrando os apontamentos do seu colega, reconheceu na figura que lhe apareceu à frente Pedro Reis. Pediu ao anfitrião que o conduzisse ao quarto onde ocorrera o crime.

O quarto, pertencente ao professor Sirius, tinha como mobília uma cama, um roupeiro, um pequeno sofá, uma secretária com uma pequena estante e uma cadeira. Em cima da secretária, cujo tampo estava completamente sujo de sangue, existia uma carta de Zodíaco, também ela ensanguentada. Nas paredes, existiam vários quadros com temas abstractos e com motivos ligados à astrologia.

Narciso Morais, qual Holmes, pôs-se de gatas pelo chão, espreitando debaixo dos móveis, afastando o sofá, arrastando um pouco a cama, mas nada de estranho notou. Apenas uma limpeza impecável.

Recordou os apontamentos do colega.

“Todos os quartos são parecidos, variando apenas os quadros nas paredes e os livros das estantes. As camas encontram-se todas alinhadas segundo o eixo norte-sul geográfico. A cabeceira fica sempre virada para norte. A secretária está ao fundo da cama, encostada à parede.”

“A vítima deverá ter sido apanhada por trás. Cortaram-lhe as carótidas, pelo que rapidamente se esvaiu em sangue. Tombou sobre a secretária com o braço direito esticado sobre o tampo, e fazendo um ângulo de 45 graus, com o outro braço que se estendia para a frente, tocando num dos livros da primeira fila da estante que pousava sobre a secretária. Trata-se do famoso livro de Nostradamus.”

“Do lado esquerdo, de uma janela, pende uma corda, amarrada à perna da cama, e que termina a cerca de um metro do jardim.”

Narciso Morais olhava em redor tentando confirmar as notas do seu colega. Lá estava o livro de Nostradamus. Lá estava a cama perfeitamente alinhada. Lá estava o sangue. Lá estava o giz a marcar a posição dos braços em cima.

– Já alguém mexeu neste quarto hoje?

– Não! – respondeu o jovem. – Desde ontem que ninguém aqui entra.

Pediu depois Narciso Morais, para Pedro lhe descrever os seus passos na última noite, levando-o aos lugares onde estivera.

– Ontem foi o meu dia de arrumar a cozinha, pelo que me recolhi ao meu quarto um pouco mais tarde. Seriam cerca das dez horas.

Levou o polícia à cozinha, quase vazia dos electrodomésticos que hoje em dia ajudam a realizar as tarefas domésticas.

– Como vê, fazemos as tarefas manualmente, pelo que demoramos algum tempo.

Seguiram depois para o quarto de Pedro, que Narciso pode constatar ser semelhante ao do seu mentor. A cama alinhada, a estante, o sofá, a secretária, a cadeira… tudo na mesma ordem perfeita. Pensou Narciso que talvez aquela casa tivesse sido escolhida, porque estava alinhada segundo a direcção que permitia seguir os preceitos daquela estranha seita.

– Fiquei aqui a estudar. Resolvi, como estudo, analisar a carta astrológica do meu amado mestre. Sentei-me ali a fazer o meu estudo. Aquilo que vi assustou-me. A morte rondava-o. A conjunção destes planetas – e apontava para o mapa celeste, cheio de quadrados, triângulos, e outras figuras geométricas – e a estrela Sirius, nesta noite de lua nova, eram um prenúncio de morte. Hesitei algum tempo sobre o que fazer até que me decidi avisá-lo. Fui ao seu quarto. Eram onze e cinquenta. Bati. A porta não estava fechada, abriu-se, e vi o mestre caído sobre a secretária. Depois chegaram os meus condiscípulos, que eu chamei, e resolvemos telefonar para a polícia. Fiquei tão perturbado que ainda não voltei ao estudo e tudo se encontra nesta secretária como quando ontem a abandonei.

– A porta da casa é fechada à noite? Eu, como iniciado-mor, tenho o dever de fechar todas as portas e janelas, excepto as dos quartos durante o verão, a partir das oito horas. E a partir desse momento ninguém mais se poderá ausentar desta casa até às oito horas da manhã.

Narciso olhou a secretária. Batia certo com o que Pedro dizia. Como amante da astronomia, ele sabia da conjunção em simultâneo com a mudança de fase da lua. Só que ele não a temia, apenas achava que se tratava de uma coincidência e de um fenómeno natural digno de ser observado, enquanto que o outro se assustava com a sua superstição primária.

Narciso olhou os apontamentos.

– Leve-me junto de Aurora Cardeal.

Pararam junto da porta de um quarto onde Pedro Reis bateu. Apareceu uma jovem despenteada, descalça, de olhos inchados, com olheiras, e envergando uma túnica roxa que lhe chegava aos pés, e que lhe dava um aspecto lúgubre.

Narciso mandou Pedro esperar à porta e entrou. O quarto era idêntico aos outros. Apenas a cama desfeita o tornava diferente.

– Estou aqui deitada há horas, e não consigo dormir. Uso esta túnica relaxante na esperança de melhorar, mas não está a fazer efeito.

– Ontem estava em meditação quando ouvi chamar. Não sei bem que horas eram. Apenas sei que não era meia-noite. Para essa hora coloco um despertador, pois tenho que ler um pouco da obra do grande mestre Nostradamus. A voz que me chamava despertou-me do transe e fui ver o que sucedia. Ao chegar ao quarto do amado mestre Sirius, desmaiei durante alguns instantes. Quando acordei, estava deitada na cama do amado mestre. Depois de recuperar, vi que estavam presentes o irmão Pedro e o irmão Belmiro.

Narciso Morais deu uma mirada à secretária de Aurora, onde repousava, na mesma posição que no quarto do Professor Sirius, o livro referido.

A rapariga deitara-se sobre a cama e olhava fixamente o tecto, ausente.

Vendo que não adiantaria muito ali dentro, Narciso saiu. Pedro Reis aguardava-o no exterior do quarto, e, como que adivinhando o que o polícia pretendia, levou-o ao quarto de Belmiro.

Este era jovem, também, com ar mais pálido que Pedro e ainda mais magro.

– Foi terrível. E eu soube o que se iria passar. Depois que me recolhi, por volta das nove horas e comecei o meu estudo, percebi que um drama se podia abater sobre o nosso templo. Ontem era o dia de entrar em transe, elevar-me do corpo, e procurar o futuro. Durante o transe vi o amado mestre a ser levado pelo espaço. Percebi que era um sinal, mas pensei que o amado mestre também vira o perigo e estivesse prevenido. Não sei quanto tempo circulei dentro deste quarto, tentando tomar uma decisão, olhando constantemente o relógio, sem saber se haveria de cometer a ousadia de o prevenir do perigo. Fui à janela, eram onze horas e quarenta e nove minutos, e vi um vulto a fugir. Bem iluminado pelo luar recortando-se entre as árvores do jardim e saltando o muro. Senti um baque e corri ao quarto do mestre onde já estava o irmão Pedro. Depois chegou a nossa irmã Aurora, que desmaiou, e só depois chamámos a polícia.

Narciso Morais tirou o amarrotado papel do bolso, lendo mais algumas notas.

“Um grupo de gente estranha. Com hábitos e manias incompreensíveis. Vivem numa casa com trancas em todas as portas e janelas, são fechaduras um pouco arcaicas mas seguras. Todas as portas e janelas se encontravam bem fechadas com excepção das do quarto da vítima e de Belmiro.”

“Todos os quartos são no primeiro andar. A faca do crime e umas luvas ensanguentadas, com proprietário desconhecido estavam junto do corpo.”

 “Pedro é o mais antigo da seita. É membro há cerca de dois anos. A rapariga entrou para o grupo há perto de ano e meio. A entrada de Belmiro é mais recente. Tem apenas dois meses como membro.”

Narciso Morais abandonou a casa, sendo acompanhado por Pedro até à porta, pensando no relatório que iria apresentar ao seu superior.

Termina aqui a narração e pergunta-se: que irá escrever Narciso Morais nesse relatório?

 

A – Vai indicar Pedro Reis como assassino.

B – Vai indicar Aurora Cardeal como assassina.

C – Vai indicar Belmiro Torres como assassino.

D – Vai sugerir que o crime foi cometido por alguém que não os moradores.

 

{ publicado na secção “Policiário” do jornal “Público” de 28 de Maio de 2000 }

 

SOLUÇÃO

 

Desafios policiários de PAULO

 

 

© DANIEL FALCÃO, 2005