CLUBE  DE  DETECTIVES

 

CAMPEONATO NACIONAL 2003/2004

Prova nº 10

 

 

EMENTA: DOIS EM UM

Autor: M. Constantino

 

Fiz, em certa fase da minha vida, muitas visitas ao Praia-Hotel-Âncora. “Hóspede de estima dos proprietários”, a quem conhecera, em circunstâncias que não vêm ao caso: Pedro Navarro, excelente profissional no ramo, e Clemente Nunes, sócio capitalista – “o Clemente Rico”, como era conhecido no Alentejo.

O Âncora era o protótipo da moderna geração hoteleira, formado por um grande U, com uma parte mais curta, para dar lugar ao pequeno lago, em cujo centro foi implantada uma âncora de pedra com cerca de quatro metros de altura, do cima da qual caem sobre a sua estrutura grossos jorros de água límpida – uma espécie de âncora “chorante”! Com apenas três pisos, centena e meia de quartos em ambos os lados dos corredores centrais. Amplas salas e servido por profissionais qualificados, eles e elas de calças ou saias negras, jaquetas, luvas que é preciso mudar com frequência, camisas brancas a que não falta a distinção de um laço da cor das calças.

Nunca deixaram de me surpreender os eventos daquele terrível ano de 82 – ano negro do “Âncora”. Primeiro, a morte misteriosa da linda e loura Elsa, jovem irmã do também louro e elegante servidor Marco, “o querido das estrangeiras solteironas”… e não só, dizia-se. A rapariga, isolada no silêncio de um mundo próprio, tornara-se uma referência agradável, nas visitas ao irmão. Conheceu Maia, o chefe dos criados, maduro, atraente; compreendia-a e tomou disso vantagem. Paixão fulminante, que tomou o coração de Elsa. Marco e Maia tornaram-se amigos. Depois, Maia começou a faltar aos encontros – o carro desportivo tomou o lugar de Elsa. Esta esperava-o na praia, incapaz de gritar a sua dor; só as lágrimas a denunciavam. Um dia, deixou as roupas na praia, entrou na água e não voltou. O cadáver apareceu, dias depois, algo distante, dilacerado pelo embate nas margens. Acidente? Suicídio? Impossível decidir.

A tragédia de Setembro seguinte excedeu o impensável. O patrão Navarro chegaria antes do almoço, informou-me o solícito e empertigado Maia. Chegou e almoçou comigo, de semblante carregado. Desabafou, preocupado, que o sócio vinha a caminho, e esperava “borrasca” com um dos criados, recentemente admitido. Não esperava a visita, e o quarto dele, privativo (o nº 1), no primeiro piso e frente ao lago da âncora, tinha sido dispensado a um grupo de ricos árabes, que discutiam questões de petróleo. Requisitaram três dezenas de quartos, dos dois lados do corredor, e uma sala. Têm os seus “gorilas”. Comem muito, bebem muito, não incomodam; excepto que ninguém ali passa, sem ser revistado, até com detector de metais e raios X, não vá alguém engolir um prego matador de árabes! Riu e acrescentou: O quarto do Clemente foi na onda, ainda que desocupado. Nem cama tem!

Afinal, o enfezado alentejano chegou sereno. Fechou-se no escritório com Navarro e, porque este lhe disse que eu chegara, de manhã, pediu que me procurassem, para fazer-lhes companhia. Clemente sabia que estava ali o João Santo – o tal recém-admitido, jovem muito moreno, atleta musculado, a que Navarro se referira. Fora, segundo Clemente, um comando, atirador especial. Solitário como um lobo – daí o nome de guerra de “Santo-Lobo” –, pacientemente empoleirado numa árvore próxima de um acampamento IN, uma arma pequena e leve, uma Roger Mini 14/5R, de grande poder destrutivo, munida de mira dióptrica, visava o cabecilha do grupo com um só tiro, mortal. Mais de uma dúzia de comandantes IN caíram nestas condições, provocando pânico, até que, por engano, matou um camarada que usava idênticos métodos. Reconduzido ao grupo sob o comando do alferes Daniel Fontes, herói morto, filho dele, Clemente, João salvou-lhe a vida duas vezes, mas não a terceira, ao perseguirem, a descoberto, o IN em fuga. Quando veio de Angola, em 1975, procurou-o, para lhe agradecer a protecção a Daniel e falar-lhe deste, mas só recentemente ele consentiu passar umas férias nas herdades do Alentejo. Tencionava dar-lhe propriedades e fazê-lo seu herdeiro; em vão. Ninguém sabe como conseguiu passar a célebre arma; o certo é que a utilizou para abater os milhafres, por mais altos que passassem – nunca mais que um tiro! Raspou-se sem se despedir, levando cerca de 1500 contos. Mas não interessa, dou-lhe mais, se precisar… Espero que não o avisem. Terei tempo para lhe falar com calma e oferecer-lhe quota no hotel; que tal? “E agora bebia um conhaque” – terminou.

Navarro telefonou. Alfredo apareceu com o conhaque e o habitual uísque para Navarro. Maia, que acompanhara Alfredo, esperava. Quando este saiu, Clemente olhou directamente para o chefe dos criados. Como que numa acusação: Tive conhecimento de que dois empregados, melhor, dois criados, têm enganado alguns hóspedes com a venda de objectos de bronze, rotulados de antiguidades. Quero isso apurado, urgentemente. Maia, embaraçado, prometeu descobrir o culpado… tinha uma ideia. O diálogo foi ouvido por Alfredo, que, ao entrar na sala dos empregados, exclamou: Vem aí “o Carmo e a Trindade”! O patrão Clemente quer saber quem intruja os hóspedes com a venda de antiguidades falsas. O Maia tem uma ideia de quem seja; vocês já ouviram falar no negócio? Claro que parecia um segredo bem guardado: Rui, Morais, Laurindo, Marco e Lopes, os presentes, mostraram total ignorância.

Navarro tenta convencer Clemente a ir dormir na sua casa. Este quer dormir no seu quarto, nem que seja no chão; tem no armário roupa e acessórios para a estadia. Maia lembra que, se o patrão não se importa de dormir numa cama de campanha, ele tem uma no seu quarto para uma eventual dormida do irmão, cama essa que poderia instalar no quarto. Proposta aceite. Navarro foi buscar o molho das chaves e entregou-as, com a recomendação: Estão aí todas as chaves mestras do Hotel. Vai lá armar a cama e não incomodes os senhores do petróleo.

A tarde aproximava-se do fim. Maia já preparara a cama. Passou por João Santo, entregou-lhe as chaves e pediu que levasse duas almofadas e um candeeiro de mesa para o quarto nº 1; e não se pegasse com os árabes! Ele, Maia, tinha de levar o irmão ao médico. De facto, o irmão, surdo-mudo, esperava no átrio. Marco observou, com tristeza, a conversa mímica entre os dois irmãos; e, quando o surdo-mudo se afastou, reentrou na sala, cismático. Cerca de meia hora depois, sem voltar a ver João, Maia recomendou que era tempo de preparar as salas de jantar. Alfredo pensou: “Ainda tenho tempo para um mergulho”, e evaporou-se. Marco resmungou: Vou para a copa; tenho de tirar o lacre a duas ou três garrafas do “Especial Clemente”, para o velho…

Jantámos na mesa de Clemente, servidos por Marco, nervoso, mas elogiado pelo patrão: “Ainda bem que te lembraste, rapaz. Esta colheita de 1979 é divinal.” Navarro optou por jantar em casa. O “Santo” não se mostrou. Maia primou pela ausência.

Nessa noite, um homem sonhou (mas acordado), semi-recostado na almofada da cama, olhos postos num livro, que não lia. O seu sonho não incluía a morte cuspida, quase silenciosa, do cano negro de uma arma…

Na manhã seguinte, pelas 8h30, “O Lobo”, audaciosamente, levou o pequeno-almoço ao quarto nº 1. Passou o controlo dos árabes, inspeccionado dos calcanhares ao céu-da-boca, verificada a cafeteira do café, o pão, etc. Bateu à porta, ninguém respondeu; rodou a maçaneta e entrou: Clemente jazia morto.

Sem nada revelar, voltou, revistado, ainda mais rigorosamente, por uma nova segurança, que sucedera à anterior. Deixou a bandeja no quarto e telefonou a Navarro. Foi este, em pânico – pela perda do sócio e inevitável escândalo – que me acordou. Lembrei-me do inspector-chefe Valdemar, um antigo colega que optara pela P.J.

Quando chegou, com a equipa investigadora e médico, aguardava-o outra surpresa. Porque Maia não chegara nem atendia o telefone, alguém se lembrou de procurar no quarto – lá estava ele, com a garganta cortada! Fizemos sair os cinco empregados, que, além do Maia, tinham quarto no hotel – Alfredo, Marco, Rui, Raul e Pinto – e vedámos o acesso.

Valdemar começou pelo Clemente. No corredor, chamou os vigilantes árabes e deu-lhes conhecimento da morte suspeita. Confirmou que, desde a noite anterior, só ali passaram Maia, Clemente e João, este à noite e de manhã. Todos revistados e sujeitos aos aparelhos. Seguimos e entrámos no quarto nº 1: a luz da mesa-de-cabeceira ainda estava acesa, embora a claridade que se escoava pelos vidros da janela de guilhotina, filtrada por leve cortina de tule, fosse bastante para ver a vítima, recostada na almofada, com um livro caído sobre o peito. O fotógrafo trabalhou. Valdemar fez um rápido esboço e entregou-mo:

 

 

O Dr. Dinis aproximou-se do morto, transmitindo em voz alta: O corpo mantém a posição de quando foi atingido pela bala que trespassou o crânio, em linha descendente, do supra-orbital esquerdo, saindo do lado oposto. Não há vestígios ou tatuagens de pólvora na área circundante do orifício de entrada; a velocidade rotativa criou um choque hidrodinâmico nos tecidos, destruindo-os. Face à flacidez muscular e à densidade da película que se vai formando no globo dos olhos abertos, a hora da morte situa-se entre as 2-3 horas da madrugada.

Valdemar tocou a beira da mesa-de-cabeceira lascada, apontou o pequeno orifício no vidro inferior da janela, que a bala não estilhaçou, mas deixou sobre o parapeito interior, do lado esquerdo do buraco, uma pequena lasca de vidro; olhou o orifício na cortina de tule e finalizou: “A bala veio de fora, fez ricochete na mesa e deve estar por aí”. Procurou-se, incluindo no cadáver, com detector e raios X dos árabes – sem êxito. O agente Lemos farejava, de lente em riste. Encontrou, na perna da cama, uma mancha escura, que o intrigou. Recolheu-a, com a etiqueta A-1. O quadrado do vidro, com o orifício que Valdemar marcou com um giz vermelho, seria cortado posteriormente e marcado A-2.

Saímos. Observámos que era impossível um disparo do pátio, o centro do U, pois a janela ficava a 3 metros do solo. Procurámos Navarro no escritório, onde se lamentava, com um saco de gelo sobre a testa. Facultou-nos a chave do armazém, por cima da discoteca, de cuja única janela seria possível atingir o quarto fatídico. No entanto, usando o cabo da vassoura como arma apontada ao orifício da bala, em qualquer das muitas posições escolhidas, só poderíamos ver os pés da cama e o espaço que se lhe seguia. Desanimados, descemos e voltámos para a morte de Maia.

Aqui, o panorama era diferente, havia que ver. O morto caíra para trás, derrubando uma pequena cadeira, junto à mesa baixa, onde estavam dois copos (B-1 e B-2), com restos de uísque. Sangue coalhado em abundância espalhava-se pela camisa branca e no chão, onde caíra uma navalha de barbear, suja de sangue (B-3) e junto à mão direita do morto, que, milagrosamente, estava limpa. O Dr. Dinis citava: Corte profundo da esquerda para a direita (vê-se a olho nu), com instrumento corto-perfurante; esmagamento, pelo golpe, da carótida e veia jugular – degolação, claro! “Rigor mortis”, salvo autópsia em contrário, num período das 20, 21 às 22 horas de ontem. O agente Lemos já encontrara vestígios idênticos a A-1 na parte de trás do fogão (recolheu e marcou B-4), alguns cabelos fracos, sujos e estaladiços (B-5). Um pó azulado, que aderira a um sapato – não do morto – e marcou o soalho, foi rotulado B-6. No armário do morto, muito limpo, apenas um tacho de 20 litros, debaixo do qual se encontrava um Buda de bronze e um retrato de Elsa.

Saímos para reunir os empregados, para interrogatório. Mais uma vez, João Lobo era indomável: havia saído com o saco dos tacos para o campo de golfe. Os depoimentos pouco adiantaram, salvo que era impossível um disparo no pátio, pois o segurança e o porteiro da noite estiveram por ali toda a noite. Aliás, foi este último que nos deu uma réstia de esperança: cerca das 21 horas, quando ia entrar de serviço, viu um homem dirigir-se ao quarto de Maia. Pareceu-lhe conhecido, mas impossível de identificar com rigor, pois nada observou de particular.

Depois que os investigadores regressaram, Valdemar ficou por ali a bisbilhotar, vistoriando os quartos dos criados e demais dependências, sem proveito, até à chegada dos resultados das autópsias e análises laboratoriais. Chegaram, já tarde, no dia seguinte.

Leu: “a) autópsias confirmam dados iniciais; b) A-1: ácido acético, vinagre, carbonato amónio, sal, ácido tartárico e acetato de cobre; A-2: bala pelo calibre (5,6?), revestida aço; B-1: impressões digitais Maia; B-2: s/ impressões digitais; B-3: s/ impressões digitais, arma da morte; B-4: mesma mistura A-1; B-5: s/ bolbo, pó aderente; B-6: mistura colofónia, cera e sebo, pó de mínio.” B. sorte!

Levámos uma noite de divagações até que exclamámos: Eureka!

É tudo. Os leitores poderão desenvolver os respectivos relatórios, com as justificações deduzidas.

 

{ publicado na secção “Policiário” do jornal “Público” de 13 de Junho de 2004 }

 

SOLUÇÃO

 

 

© DANIEL FALCÃO, 2004