CLUBE  DE  DETECTIVES

 

CAMPEONATO NACIONAL 2003/2004

Prova nº 6

 

 

FORAM AMIGOS…

Autor: Daniel Falcão

 

A Festa da Coca é uma manifestação popular e religiosa, celebrada desde meados do milénio passado e que continua a ser levada a cabo, com o respeito, entusiasmo e tradição que sempre a caracterizaram, pelas gentes da vila raiana de Monção. Esta festividade aproveita para reforçar a vitória do bem sobre o mal, simbolizada pelo combate entre S. Jorge e o Dragão (com o primeiro a sair sempre vencedor da peleja).

Foi o meu interesse em assistir a este dia festivo que me levou a aceitar o convite formulado por um bom amigo, residente naquela verdejante terra minhota. O que eu não esperava era encontrar o meu ex-colega de faculdade a concluir uma investigação policial que se prolongara durante uma semana. Pelo contrário, tinha o desejo de o encontrar no prelúdio ou numa fase crucial de uma qualquer investigação, para a qual pudesse dar o meu contributo.

Sendo ele conhecedor do meu prazer em decifrar casos policiais, decidiu, como já o fizera em várias outras ocasiões, pôr-me à prova, dando-me conhecimento dos elementos recolhidos durante o respectivo deslindar.

«Foi solicitada a minha presença numa aldeia aqui próxima, onde ocorrera uma morte suspeita. A moradia, onde tudo sucedera, era habitada por três personagens – Alberto, Bernardo e Carlos –, há já alguns anos e, pelo que constava, amigos de longa data. Chegado ao local, deparei com o morto e os dois sobreviventes, para além do restante pessoal policial.

A moradia, térrea, fora construída numa clareira aberta numa zona tipicamente florestal. Para aceder à moradia, saindo da estrada municipal, passávamos por uma vereda, ladeada por altas árvores, completamente empedrada até à entrada principal. A área da clareira estendia-se em mais de 20 metros, partindo das paredes exteriores da moradia.

Ultrapassando a entrada principal da moradia, aparece o “hall” e, depois, passando a primeira porta interior, deparamos com a sala de estar. Nesta sala, podemos observar quatro outras portas: uma do lado direito, quando se entra, dando acesso ao escritório onde fora encontrado o corpo; à esquerda, existiam mais duas portas, a primeira permitindo aceder à sala de jantar e a segunda servia para entrar na cozinha; pela última porta, mesmo em frente, passamos à área onde se situam os quartos.

Entrando neste último espaço, encontramos em frente os quartos de Bernardo, este no canto oposto ao escritório, e de Carlos, os sobreviventes, separados por uma casa de banho para uso comum. A porta do quarto de Alberto ficava à direita, para quem entra nesta zona da moradia. O quarto de Alberto, para além de ter casa de banho privativa (era o dono da casa), tinha ainda uma porta de ligação com o escritório.

Bernardo fora o primeiro a chegar ao escritório onde encontrara o corpo, já sem vida, de Alberto. Nas suas declarações, Bernardo referiu ter acordado sobressaltado com um som que lhe pareceu ser proveniente de uma arma de fogo. Já passava da uma hora da madrugada. Saiu então do quarto, acendeu as luzes da área de acesso aos quartos, primeiro, e da sala de estar, depois. Chamou-lhe a atenção a porta do escritório que se encontrava ligeiramente entreaberta. Dirigindo-se ao escritório, empurrou a porta, acendeu a luz e deparou com o corpo do amigo sentado à secretária, com a cabeça sobre a mesma, de onde sobressaíam os estragos provocados, como viria a confirmar-se mais tarde, por um disparo fatal. Hesitou durante algum tempo, menos de um minuto, até decidir chamar a polícia, quando apareceu no escritório o outro residente, Carlos.

Quando cheguei à moradia, iniciei a minha investigação pelo escritório. Curiosamente, verifiquei que Alberto estava sentado num banco. Explicaram-me, mais tarde, que se tratava de uma simples mania; preferia, quando se sentava à secretária, usar um desconfortável banco, em vez da tradicional cadeira de braços, com todas as comodidades inerentes.

Sobre a secretária, além da cabeça e do braço direito, existia apenas um candeeiro, apagado, do lado direito e um telefone e uma caneta do lado oposto. Quando sentado à secretária, Alberto podia facilmente observar quem entrava pela porta principal do escritório, inclinando-se levemente para a esquerda. Em frente a essa porta existe uma janela, que fora encontrada aberta. Pelo lado exterior, junto à janela, foram encontrados dois elementos muito interessantes: num canteiro com flores, que havia sido regado no dia anterior ao fim da tarde, observaram-se algumas flores partidas e, na terra, marcas de pegadas, como se alguém tivesse por ali passado; e, mais interessante, a arma de onde saíra a bala que atravessara a cabeça de Alberto.

A cabeça de Alberto ficara num estado verdadeiramente lastimável. Distinguia-se, sobremaneira, a ferida com queimaduras e com contornos bastante lacerados e muito irregulares. A bala fatídica atravessara um quadro pendurado na parede, próximo da janela, mesmo na testa do retratado.

Passei, depois, à segunda fase da investigação: recolher as declarações dos residentes sobreviventes. Na noite anterior, no final do jantar, por volta das 21h, separaram-se: Alberto foi para o escritório, Bernardo foi para o quarto e Carlos saiu para se encontrar com uns amigos. Bernardo esteve a ler e a ver televisão até à meia-noite, hora a que se deitou. Viria a acordar, sobressaltado, quando escutou o som do disparo e comportou-se, a seguir, como já te referi. Carlos chegou a casa, por volta da uma hora da madrugada, depois de se despedir dos amigos que o levaram de carro até à entrada da vereda que dava acesso à moradia. Teve de percorrer a pé esta última parte do caminho até chegar a casa. Após entrar em casa, dirigiu-se imediatamente para o quarto, pelos vistos cambaleando, pois tinha-se excedido nas bebidas. Referiu ter demorado algum tempo a reagir ao som estranho que escutara e dirigira-se, em seguida, ao escritório, seguindo as luzes que estavam acesas. No dia seguinte, quando nos voltamos a encontrar, acrescentou que se lembrara de, ao chegar a casa, quando devia estar mais ou menos no fim da vereda que dava acesso à clareira, ter visto um vulto a entrar na moradia. Mas, reconheceu ele, como no dia anterior não estava suficientemente lúcido, havia-se esquecido de o mencionar.

Ainda sobre a moradia, deixa-me acrescentar que, no seu exterior, não existe qualquer tipo de iluminação e que a lâmpada do “hall” de entrada estava fundida há já vários dias. Para além da porta principal de entrada, assim como de algumas janelas, existiam ainda mais duas portas de acesso pelo exterior: uma com entrada directa para a cozinha e a outra com entrada directa para o quarto de Alberto.

Enquanto procedia à recolha das declarações, os meus colegas trataram de fazer uma visita, digamos antes, uma simples observação das restantes divisões da moradia, procurando encontrar alguns elementos passíveis de interesse para a boa prossecução da investigação. No quarto de Carlos descobriram três pares de sapatos (a ele pertencentes), tendo um deles resíduos de terra que viria a confirmar-se ser exactamente do mesmo tipo da existente no canteiro de flores já mencionado.

A investigação prosseguiu nos dias seguintes. Foi confirmado não existirem quaisquer impressões digitais na arma fatal. Uma revista mais cuidadosa feita à moradia revelou uma descoberta muito interessante que, ao ser relacionada com outros elementos recolhidos, se veio a tornar preponderante para descortinar o que havia sucedido.»

Enquanto escutava a narrativa do meu amigo, assistia ao combate entre S. Jorge e o Dragão debaixo de um sol magnífico, que alimentava aquelas nobres terras minhotas havia já vários dias.

Foi então que iniciei a minha investigação. Enquanto aguardam que vos exponha os resultados a que cheguei, que tal darem o vosso parecer? O que terá efectivamente acontecido? Façam a vossa exposição, não esquecendo nenhum dos elementos presentes na narrativa.

 

{ publicado na secção “Policiário” do jornal “Público” de 29 de Fevereiro de 2004 }

 

SOLUÇÃO

 

 

© DANIEL FALCÃO, 2004