CLUBE  DE  DETECTIVES

 

CAMPEONATO NACIONAL 2003/2004

Prova nº 8

 

 

UM CASO CURIOSO

Autor: Inspector Fidalgo

 

Apesar de toda a sua experiência, ainda há casos que conseguem intrigar o Inspector Fidalgo, ao ponto de o obrigar a interromper umas curtas férias para dar uma ajudinha à polícia local.

Tudo se passou numa aldeia de praia bem portuguesa, de areal extenso, onde o Inspector Fidalgo passava horas e horas em prolongados passeios à beira-mar, uma das suas actividades predilectas.

Naquela madrugada do primeiro dia do mês, algo de diferente aconteceu, capaz de se tornar o acontecimento social do momento: o jovem chamava-se Afonso, nascera ali e por todos era chamado “Burrica”, desde sempre. Procurava o sossego e não se dava praticamente com ninguém. Apareceu morto, aparentemente devido a queda, à porta do principal estabelecimento da aldeia, a mercearia do senhor Silva.

Foi ele mesmo quem deu com o corpo do rapaz, eram quase duas da manhã, quando saíu do estabelecimento, depois da costumeira maratona mensal para acerto das contas.

Desta vez, contou, saía do estabelecimento pelas duas horas, acabara de fechar a luz e a porta e preparava-se para ir para casa, a escassos metros do estabelecimento, quando deparou com um corpo estendido no passeio. Pensou tratar-se de um qualquer embriagado, porque por ali o dia do pagamento do salário originava frequentes consumos exagerados de bebidas alcoólicas. Só se surpreendeu realmente quando verificou que o jovem estava ferido na nuca, tendo sangrado abundantemente. Ao tentar determinar se estava muito mal, virou-o, mas logo notou que a cara não estava em boas condições e que era impossível que estivesse vivo. 

O Inspector Fidalgo viu o corpo e tirou alguns apontamentos enquanto a polícia local fazia o seu trabalho e requisitava a colaboração dos peritos da Judiciária, que iriam demorar algum tempo. Era um moço de boa estampa, musculado e aparentando força. Envergava uma blusa de manga curta de cor azul e uns “jeans” algo gastos. Completavam a indumentária uns ténis que já tinham visto melhores dias. Procurou algum indício dissimulado, percorreu com o olhar penetrante à luz de uma potente lanterna, as mãos da vítima e as unhas surpreendentemente limpas e cuidadas, atendendo à sua actividade no mar, em busca de algum resíduo que lhe pudesse dar uma pista… Decididamente era muito mais fácil nos livros policiais… 

Entretanto, já no ambiente acolhedor do estabelecimento do senhor Silva, enquanto aguardavam a chegada dos técnicos, este mostrava-se transtornado, queimando cigarros atrás de cigarros e dizia que nunca naquela aldeia se vira um caso semelhante. Na sua opinião, o “Burrica” só podia ter tido um acidente, se calhar tropeçara no passeio e caíra desamparado com a cara no chão e rodara depois para bater com a nuca no degrau de qualquer das casas. Nunca por ali houvera violência de qualquer espécie e o “Burrica” era um moço tão recatado, não bebia… Praticamente só com ele, Silva, é que o moço falava mais, porque, tal como todos os outros que viviam do mar naquela praia, recebia o salário no dia 28 de cada mês e era nessa mesma data, quase sempre à noite, que ele ia ao seu estabelecimento liquidar a dívida do mês.

Finalmente chegados os técnicos, tudo correu com a rapidez e eficiência habituais: as fotos foram tiradas, as recolhas de amostras e a busca do local, tudo foi meticuloso. Não havia dinheiro nem carteira, nem um simples papel, nem uma chave de casa, absolutamente nada. De diferente apenas a assinalar que o corpo estava deitado em cima de uma beata de cigarro que ainda estava a arder quando aconteceu a queda porque deixou as suas marcas, quer na blusa, quer no corpo da vítima. E era de um cigarro da mesma marca dos que o senhor Silva consumia…

– Senhor Inspector, o “Burrica” também fumava muito, era meu cliente e sei bem…

E foi buscar um papel avulso onde se lia uma imensa lista de compras em dias assinalados. No topo lia-se, a tinta azul, “Afonso”. Em quase todos os dias, havia maços de tabaco, às vezes dois e três, da marca encontrada.

Fidalgo ergueu-se e pegou no maço das folhas onde estavam apontados os débitos de quase todos os habitantes da aldeia e percorreu-as calmamente.

Dias depois chegaram os resultados laboratoriais que pouco ou nada adiantaram. Mas também não eram necessários. O Inspector Fidalgo já decifrara o caso…

 

{ publicado na secção “Policiário” do jornal “Público” de 25 de Abril de 2004 }

 

SOLUÇÃO

 

 

© DANIEL FALCÃO, 2004