CLUBE  DE  DETECTIVES

 

CAMPEONATO NACIONAL 2003/2004

Prova nº 9

 

 

O ENIGMA DA MORTE DO GERENTE

Autor: Severina

 

Vicente Lopes, gerente numa antiga oficina de bairro, apareceu morto no seu gabinete, num princípio de tarde de Outono. Foi chamada a polícia.

O agente Antonino, destacado para investigar o caso, após chegar ao local e antes de se proceder à recolha de dados, observou o corpo e a disposição na sala, por fora da porta de entrada interior para o gabinete; a porta situada mais ao lado direito por dentro da divisão, que fora aberta.

O corpo de Vicente ficara no meio da divisão, caído para diante: a cabeça apontava para a traseira do edifício. Em frente à porta da entrada interior, ao canto e junto à única janela, estava a secretária, em diagonal; ao lado esquerdo da janela, havia a porta de saída do gabinete para a rua das traseiras da oficina. Dentro do gabinete, além da cadeira giratória junto à secretária (que recebia luz do exterior pelo lado direito), o cabide de braços com o impermeável pendurado. Na parede lateral à esquerda, a estante onde, no bar aberto, estava em evidência uma garrafa de Cutty Sark e dois copos.

Logo que lhe foi possível, o agente Antonino verificou que o corpo do gerente não foi arrastado, ou mexido, após o ferimento. Dobrado para a frente, um pouco tombado para o seu lado direito e deitado sobre esse braço, a cabeça do cadáver assentava numa pasta sangrenta sobre o chão de ladrilho. Um tiro atingiu-o na nuca, à queima-roupa.

A arma, uma “Browning” antiga, era da casa. Talvez deixada pelos patrões antigos. Vicente Lopes tinha achado que era uma boa arma e chegara a estar no seu gabinete. Agora, ficara no chão, ao lado esquerdo do cadáver – embaraçada no lenço de seda natural, agora com vestígios de sangue, que Vicente costumava usar. A cápsula não foi longe. A bala atravessou a cabeça e foi cravar-se na ombreira da janela, que dá para as traseiras.

O agente Antonino foi informado da reunião, na véspera, entre os representantes dos donos da empresa e Vicente Lopes. E que este saiu tarde do seu gabinete – segundo o guarda da noite.

Vicente Lopes, com cinquenta e poucos anos, viúvo, na gerência da empresa desde a mudança de proprietários da oficina, era produto de uma família de topo, arruinada. Destacou-se em épocas sucessivas na ginástica de alta competição, enveredando depois pela vida circense. Era dado ao malabarismo, que nunca deixara de praticar ocasionalmente. Com personalidade e carisma para gerir e se fazer obedecer, aceitou e adaptou-se ao emprego possível. Mas sem conseguir facilidade de convívio com os empregados mais antigos da casa, herdados da anterior gerência, com os quais era forçado a lidar. Comprometera-se perante o antigo dono, fundador da firma, a conservá-los em serviço enquanto não houvesse justa causa para despedimento.

No dia da sua morte, faltavam 15 minutos para as dez horas da manhã quando entrou a porta principal. Vinha molhado, porque chovia e trazia a sua maleta de executivo. Não parou na recepção.

O seu gabinete ficava ao fundo da oficina, à direita, com janela e porta de saída para a rua, nas traseiras. Logo que tomou posse mandou fechar a porta interior, que ligava ao gabinete da sua auxiliar, Ana Cristina, no compartimento ao lado, com o pretexto da necessidade de forrar a parede de ligação com uma estante. Deste modo, Ana Cristina só o viu, por acaso, quando ele acabava de limpar os sapatos no tapete, junto à porta e entrara para ocupar o seu lugar.

A porta ficou entreaberta, como sempre quando estava disponível.

Às dez e trinta e cinco, o contramestre André Silveira (que dirigira a oficina antes de Vicente Lopes ser contratado) foi ao gabinete do gerente, com uns documentos na mão. Não se demorou. Saiu num repente, de rosto fechado – segundo Graciano, o estafeta do Banco, porque se cruzou com ele.

Preparada a correspondência para entregar ao gerente e a folha dos depósitos da manhã, para assinar, Ana Cristina aproveitou e deu a pasta a Graciano, que a levou ao gabinete do Vicente Lopes – como por vezes fazia para facilitar o próprio trabalho. O gerente recomendou a Graciano que não fechasse a porta ao sair.

Às dez e cinquenta, Ana Cristina percebeu que deixara de chover. Na rua ao lado andavam obras, e a betoneira, perto da sua janela, começou a trabalhar e a fazer barulho. Ana Cristina tratava, então, do arquivo – não viu se alguém visitou Vicente até às onze e vinte, hora em que viu Manuel Lúcio, seu padrinho, aproximar-se do gabinete do gerente. Como ela queria falar ao padrinho, ficou por ali à espera que saísse, já que só entrava no gabinete do gerente quando era chamada, ou fosse necessária a sua presença. Lúcio empurrara a porta e entrara, para sair de imediato, quase a correr, deixando a afilhada tão confusa, que lhe foi no encalço, sem reparar no fornecedor que entrava para falar com o gerente, não conseguindo chegar a tempo de impedir que ele saísse pela porta fora. Vicente não gostava de lidar com pessoas mais velhas e doentes; e Lúcio era doente; nem imaginava o que o gerente lhe dissera, num dia mau…

O fornecedor não foi atendido: encontrou a porta do gabinete fechada. Foi inútil bater e chamar: Vicente Lopes não atendeu. Podia ser que saísse pela porta das traseiras para almoçar no restaurante de um amigo, ali perto. Ou desse um pulo ao ginásio para descontraír, como também acontecia…

Não se acharam impressões digitais na arma. Só as havia num dos copos e na garrafa de Cutty Sark. O outro copo estava limpo.

Os contornos dos sapatos de sola do Vicente, notavam-se pouco, da porta de entrada até à secretária – de resto cobertas pelas pegadas das botas de Silveira e sinais do calçado de Graciano. Mas viam-se bem junto à secretária, à porta de trás e até à estante, acompanhadas pelos sinais do calçado de outro indivíduo – de pés mais pequenos e sapatos de sola de borracha – também confinados aos mesmos sítios.

Das pistas recolhidas no chão do gabinete, numa das fotos em formato normal foi possível detectar, na que focava a área perto da porta da entrada interior, uma marca a um lado, como se houvesse a intenção de evitar as pegadas existentes: um leve contorno, quase triangular, apenas um resquício de lama, mal seca, nem sempre contínuo; e, perto, o sinal de um pequeno aro carregado, talvez com dois centímetros de diâmetro, que o alastramento pelo peso tornou indistinto – um quase nada a dar que pensar ao agente Antonino

Analisando as notas sobre o que se passara nessa manhã, o agente Antonino considerou a sorte de ter sido procurado pelo Luís Mota, dono do restaurante que o gerente frequentava: o homem dos pés pequenos. Luís Mota entrara no gabinete do gerente nessa manhã, pela porta das traseiras e estivera com o homem. Conheciam-se havia anos. Pois sempre que Vicente tinha apertos de dinheiro recorria a ele, o Mota: conhecido de muita gente! Vicente Lopes nunca fora pessoa para viver sem ser em maré-alta – como fora habituado… Restavam umas contas a acertar, uma conta elevada, desde a morte da mulher. Já lhe tinha pedido o pagamento… Tivera um telefonema nessa manhã: que aparecesse cedo, pois queria pagar-lhe. Após cobrar a dívida, em numerário – não gostava de cheques – beberam um copo, para comemorar, e fora sem demora à agência do banco mais próxima. Para ficar descansado!

Assim, o agente acabou por resumir:

Ana Cristina era empregada competente, quase trintona; dava-se melhor com a maioria dos empregados do que o gerente – que se conservava sempre à distância e era pouco amável com os empregados antigos. Não disse se a porta do gabinete estava fechada ou aberta, quando foi atrás do padrinho, nem deu pelo disparo do tiro.

André Silveira, empregado de confiança dos antigos patrões até há quatro anos atrás, considerava-se a pessoa certa para o lugar de Vicente Lopes, que fora ocupar o lugar por ser amigo do novo patrão. Ao visitar o gerente, de manhã, este – que lhe conhecia a fixação a seu respeito – atirou-lhe directamente e com ironia: “Para a semana vai haver uma auditoria à empresa. E depois, vai falir!... Os donos disto acham que não se lucra o bastante e não vale a pena!... Não serve de nada conspirar para me substituir… Vai tudo para a rua!” E riu-se.

“Você nunca me enganou! Não presta!” – ripostou o contramestre. Tão danado com o gerente que, quando este lhe lembrou mais tarde, pelo telemóvel, que fosse buscar os documentos deixados em cima da secretária, resolveu não ir e pediu a Lúcio para lhos ir buscar. “Só para não voltar a encará-lo”, confessou ao agente.

Graciano, que não é empregado na oficina, pareceu-lhe ter avistado o gerente no átrio do banco, nessa manhã. Quando tocou no assunto, ao falar-lhe, Vicente Lopes pareceu não o ouvir, só preocupado em que a porta ficasse entreaberta.

Não se recolheu o depoimento de Manuel Lúcio. O homem adoeceu com certa gravidade e ainda não recuperou…

A hora provável da morte, dada pela autópsia (entre as 10h30 e as 12h00) condizia com a notada pelo agente Antonino, logo que o cadáver foi levantado. O relógio de pulso, talvez parado pelo peso do corpo, na queda, marcava 11h10.

Na posse destes dados e apesar do seu empenho, o agente Antonino tinha sérias dúvidas e hesitava em concluir um relatório credível, uma vez que a complexidade deste enigma, que parece simples, estava em entender como ocorreu a morte do gerente.

Será possível que alguns dos confrades policiaristas queiram ajudar o Antonino?

 

{ publicado na secção “Policiário” do jornal “Público” de 16 de Maio de 2004 }

 

SOLUÇÃO

 

 

© DANIEL FALCÃO, 2004