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22 de Março de 1957. É
publicado, na revista “Flama”, o 1º número da Secção “O Gosto do Mistério…”,
orientada por Jartur – curiosamente, por lapso
tipográfico, identificado como “Mr. Dartur”. Domingos Cabral, com 15 anos completados
recentemente, responde ao problema naquela inserido – “O Táxi Misterioso”,
transformando, assim, em “casamento” o “namoro” que à modalidade vinha
fazendo há algum tempo, através do contacto com a Secção do “Mundo de
Aventuras”, de que era leitor há alguns anos. Sabendo, por isso, que era habitual o uso de
pseudónimo, e perante a dificuldade que sentiu na escolha, rápida, de um,
acabou, por associação, por perfilhar o “Inspector
Aranha”. É que, naquele problema, o investigador (Marcos Dias), concebido
pelo Autor (Jartur), após resolver o caso,
dirige-se para o “Clube do Aranhiço”. Escolha pouco feliz, de facto, já que
ninguém inicia a construção de um edifício pelo telhado e o principiante
começava, nada modestamente, por se designar “Inspector”…
De qualquer forma, iniciou-se, assim, um longo caminho… In Mundo dos
Passatempos, 1 de Setembro de 2007 Correio Policial, 30 de Abril de 2021 |
PRIMÓRDIOS DA PROBLEMÍSTICA
POLICIÁRIA PORTUGUESA por DOMINGOS CABRAL (do livro com o mesmo título, a
editar) 33 CICLO REINALDO FERREIRA “REPÓRTER
X” CONCURSO DOS CONTOS
MISTERIOSOS Nº 33 A VIÚVA TRISTE Como vê a minha casa é quasi
uma relíquia… Quando vim para casa os vizinhos julgavam-me louco. Mas se as
mulheres arrancam da própria carne os vestígios da velhice,
artificializando-se com maquilhagens, com massagens e com roupas vistosas – porque razão os velhos casarões não hão-de
fingir mocidade? Dois artistas amigos ajudaram-me a rejuvenescer essas
paredes, a maquilhá-las, a abonecá-las… “Dirá você porque diabo vim eu meter-me neste
monstro de pedra, que cheira a convento e a repartição publica e que capricho
me levou a gastar um dinheirão na metamorfose havendo por aí tanto palacete
fresco, elegante, quadriculado ás exigências de
comodidade de um homem moderno… Eu lhe explico… É que eu sou um espectador
entusiasta da vida. A vida é para mim o mais variado reportório de emoções
que teatro algum possue… Mas eu não gosto de
participar no espectaculo… Egoísta consciente -
procuro assistir ás obras primas da Dona Vida – o
mais comodamente instalado. «Ora esta casa possue
um camarote aberto para a cidade… Desse camarote – fumando tranquilamente o
meu charuto, vejo, lá em baixo, a vida a representar só para mim… Vejo o
formigueiro das multidões; a scenografia dos
poentes; a apoteose dos arcos voltaicos, ao anoitecer… “Venha comigo… Vê ? É
este terraço… É enorme… E repare como eu o arranjei… Espere por um pouco… Ali
são as trazeiras do manicómio – a tragedia da vida…
Aquela louca toda vestida de negro e trança
loira e olhos azues, húmidos de angustia silenciosa que nos espreita – é uma das artistas
da companhia. Chamo-lhe Joana, não sei porquê… E vê, lá em baixo, aquela
casinha que parece ter sido arrancada a uma montanha prateada da Suissa? Vê a dama, morena, vestida de azul que, sentada junto à janela, folheia um
livro, cheia de paz e doçura? Alcunhei-a, cronicamente, de D. Brites… É a
comédia… E mais além, naquele jardim, próximo da praça, a dama rechonchuda e trigueira, quasi
mulata, que traquina, vestida de Grenat, como um fedelho? Também tem um
apodo: a Sangs Gine… É a
farsa» “Mas você tem pressa? Ah! Ainda não fez o seu «conto
misterioso» para o jornal. E falta-lhe assunto? Pois vai ter um… Ouça-me…” * * * A heroína do meu conto conheci-a de longas
tranças rematadas por laçarotes, com uns olhos azues,
mui grandes, que pareciam ventosas ameaçando o amor de todos os homens que
giravam já á volta da sua puberdade. «Um dia casou. Foi um casamento de romance
camiliano – casamento contra vontade, casamento de interesse paternal… Casou,
entristeceu, os seus olhos enormes minguaram no seu primeiro poente de
tristeza… «Mas pouco tempo esteve encerrada nesse carcere…
Um ano depois, o marido, castigado talvez pelos Deuses do Amor – morria,
tuberculoso, num sanatório de montanha… Ei-la livre, ofuscando em crépons o
clarão da sua carne rosada e fresca – e herdeira de enorme fortuna… “Contudo, a dôr tinha-a
estigmatizado para sempre… A liberdade e a riqueza não conseguiram agregar-lhe
da alma os vestígios daquele ano de silenciosa tortura. Estavam então em moda
as valsas e as operetas de Franz Lehar. Parodiando um título vienense,
começaram a chamar-lhe a “Viuva Triste” … “A Viuva Triste” foi
cortejada, sitiada, perseguida pelos que cubiçando
a sua beleza quasi original – cubiçavam
também a sua fortuna. Entre os D. Juans, havia
morenos e loiros, mas todos novos, todos pretensiosamente elegantes, todos
preparados para a caçada ao seu coração… E entre as visitas de casa – o meu
pobre amigo Lúcio, gigante, pançudo com a velhice precoce a pincelar de
branco os cabelos – era, sem duvida, o mais triste, o mais feio, o menos
exibicionista de todos. E era ele, porém, o que a amava de amor. “Convencera-se que não estavam guardadas para ele
as chaves daquele paraizo. Resistiu, quanto pôde,
por temor ao ridículo, ao desengano, á desilusão… Mas certo verão, num jardim
qualquer, ao cair da tarde, chorando como uma creança,
ajoelhando-se como um neófito – explicou à «Viuva
Triste» os seus males e as suas tristezas… E a «Viuva Triste»,
sorrindo-se pela primeira vez, desde que a tinham vendido, disse-lhe: «-
Finalmente! Quebrou-se o bruxedo! Há quanto tempo eu aguardava essa confissão! Se eu já
o amava em solteira… * * * “Casou-se
de novo a «Viuva Triste», que passou a ser a
«Esposa Alegre»… Mas pouco a pouco quem entristecia
era Lucio. Uma vez veio ter
comigo, num desespero, jurando que estava na vizinhança de uma tragedia… A
mulher não era a mesma… Alguem se entrepunha entre
os dois… Uma
força secreta os separava – quando era certo que ambos se amavam ainda… «Tentei acalmá-lo e aproximei-me do seu lar – que
era o lar da sogra - a fim de descobrir o segredo daquele mal
estar... Varios indivíduos de familia da «ex-Viuva Triste»,
visitavam, com frequência, a casa… Primos, visinhos,
amigos… Entre estes estava um cavalheiro quarentão, com olhos coruscantes de
hipnotizador de feira. Inteligente e até com fluidos de eloquência… Não
hesitei na acusação… Era este o envenenador da felicidade conjugal de Lucio… O cínico aproveitava-se do seu prestígio, do seu
magnético poder de sugestão e da própria fé cristã da esposa de Lúcio para a
dominar até á escravatura da sua vontade… «Mas o meu pobre Lúcio não teve coragem de o
afastar do seu caminho… Preferiu apagar-se a si próprio na vida, como se
apaga um carácter a giz da negra ardosia. Suicidou-se – deixando, como
herança, uma carta em que denunciava á mulher a causa do tormento… «E ela, a «Viuva
Triste», fechada comigo na sala onde ainda havia vestígios de sangue,
jurou-me, entre chôros, que odiava até ao Inferno
aquele monstro que, sem a vencer na pureza do seu corpo - lhe algemava a alma
com mágicos poderes… Só Lucio amara – e Lucio seria vingado. «E cumpriu o seu juramento. O perturbador da sua
vida, morria, duas horas depois, apunhalado pela «Viuva
Triste»… “A morte de Lucio libertára-a da hipnose serena em que tinha jazido,
durante mezes…
* * * - «Espere lá… Você deve estar a pensar que nesta
historia falta o mistério - o mistério que o seu conto exige… Pois bem,
ei-lo… A «Viuva Triste» está ao alcance dos seus
olhos… É uma das tres mulheres que eu contemplo
deste camarote aberto sobre o palco da cidade… Releiam as palavras
em itálico... vejam quem podia ser a “Viúva Triste”. CONCURSO DOS CONTOS
MISTERIOSOS Nº 34 OS PORTUGUEZES DO
"PETIT-CACHÉ" A pensão “Le
Petit-Caché” era, em 1919, o restaurante preferido da colónia portugueza em Bruxelas, situado a dois passos da Praça Broukére. A sua entrada nada tinha de esplendorosa e
contudo, o “Petit-Caché”, como certos produtos farmacêuticos anunciados nos jornaes, gabava-se de que, cliente que lá entrasse uma
vez, voltasse sempre e com grande frequência. A
alquimia dos guizos e dos petiscos atraía e fixava para sempre os seus freguezes. A «tertúlia» luzitana
que se reunia todos os dias, no “Petit-Caché”, compunha-se de Marcial, de pupila
azul, rosto saxónico, que ao sabor das ondas de aventura galante, fora parar
um dia aos palcos londrinos e que em Bruxelas negociava; António da Fonseca,
pequeno, fino, concavo, nervoso, de olhar iluminado, com mistérios a boiarem
no fundo da íris, sócio de Marcial; Reis, um pouco esgaziado,
por detraz dos óculos, eloquente e guloso –
guarda-livros perito; e Bastos, comerciante, como os dois primeiros, moreno,
de voz abaritonada, anéis a refulgirem nos dedos, olhar perscrutante e
atreito a grandes entusiasmos. Todas as manhãs, à hora do almoço, todas as
tardes à hora do jantar, discutia-se a política de Portugal; os encantos de
Portugal, os defeitos de Portugal; e até, garfando o «choucronte»
e os «sauchissons» das Ardenes,
se recordavam o salpicão, as ervilhas e as iscas de Portugal. Suavisavam assim as saudades da pátria, evocando-a, discutindo-a, e até
abocando-a severamente, tal e qual como estivessem no Porto ou em Lisboa… Algumas vezes poucas, eles desciam das altitudes
dos seus sonhos até às realidades do país onde se encontravam… Todos eles gostavam da Bélgica… Mais ou menos
tinham amealhado alguns fundos naquela terra… E embora já não podessem desagregar-se da sua maquinaria civilizada –
Portugal era ainda para eles um escudo de nobreza, do qual pouco se
utilizavam mas que muito exibiam. - Bruxelas não está mal… - opinava Marcial,
recém-chegado de Londres… Mas não chega a um só bairro de certas capitaes que eu conheço… - Penso como tu… - intervinha Bastos… - Falta a
esta terra aqueles encantos íntimos e singelos do nosso país… - E não é só isso – retorquiu Fonseca. – Bruxelas
tem para nós, todos os defeitos de inadaptação de estrangeiro e falta-lhes as
grandiosidades de luz e de orgia de Paris ou de Berlim… Reis então, acertando os óculos, protestou: - Vocês falam assim porque vieram para a Bélgica
há poucas semanas… - Eu já cá estou há seis mezes
– comunicou Bastos. - E és tu
quem cá está há mais tempo – respondeu Reis. – Mas eu vivo na Bélgica, vae para cinco anos… Eu, tenho
percorrido este país em todas as direcções – e
posso afirmar-lhes que não existe nem paisagem mais sugestiva nem povo mais
bondoso… E Fonseca, espetando um cigarro na sua
interminável boquilha, comentou: - Isto és tu… que tens automóvel e passas a vida
a passear… * * * Eram onze horas da noite… Os portuguezes
eram os únicos na pitoresca sala do “Petit-Caché”… E como tinham abusado de
um respeitável vinho do Porto que Bastos trouxera e que datava de 1861, todos
tinham revelado numa acalmia ensonada… E naquele silencio, um choro de creança, um choro que surgiu, de imprevisto, e que
atroava os ares, num apelo desesperado. Ao mesmo ímpeto, os portuguezes,
os creados, os empregados de balcão e os da
cozinha, correram ao átrio da entrada. E viram então, deitado sobre um degrau
numa fofa cama feita com uma colcha amarela, um loiro miúdo de poucas
semanas, talvez de dias, abaetado e bem coberto, que protestava, numa
indignação ruidosa, contra o abandono. Pegaram nele, com aquela falta de geito que caracteriza o sexo masculino, e fizeram
prodígios por suavizar a cólera do neófito. E quando este se calou e fitou,
com os seus olhitos inexpressivos, o rosto do creado
que o erguera – a mesma ideia perpassou por todos os cérebros. De quem era o petiz? * * * Ninguem o sabia… Surgira ali abandonado, pela certa. Era um episodio folhetinesco dos muitos que os jornais registam a
diário. Mas qual a razão por que a mãe escolhera aquele local do
«Petit-Caché» para abandonar o filho? O enigma não durou muito tempo. Uma carta,
pregada com um alfinete, na colcha que encobria o pequeno exposto ia projectar um pouco de luz naquelas trevas. Dizia assim: «Aos portuguezes do
«Petit-Caché». Entre vós existe um homem que nunca me confessou
o nome – mas que me jurou amor até à morte… Com artes de sedutor embriagou-me…
Dava comigo longos passeios, para me entontecer, para me perder… Esta creança que ele se nega a reconhecer – é o fruto da sua
traição. Uma noite em que, envolvido pelos perfumes dos jardins de Namur, ele me fazia fumar o opio das suas mentiras…
Maldição para ele – e piedade para o meu filho que baptizei
com o nome de Raymond». * * * Os portuguezes do
“Petit-Caché” entreolharam-se. Qual dentre eles seria o sedutor? Nota: Na transcricção
destes dois contos/problemas foi mantida a grafia da época (1927).
Fontes: Secção
Correio Policial, 30 de Abril de 2021 | Domingos Cabral Blogue Repórter de Ocasião, 15 de
Abril de 2025 | Luís Rodrigues |
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© DANIEL FALCÃO |
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