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22 de Março de 1957. É
publicado, na revista “Flama”, o 1º número da Secção “O Gosto do Mistério…”,
orientada por Jartur – curiosamente, por lapso
tipográfico, identificado como “Mr. Dartur”. Domingos Cabral, com 15 anos completados
recentemente, responde ao problema naquela inserido
– “O Táxi Misterioso”, transformando, assim, em “casamento” o “namoro” que à
modalidade vinha fazendo há algum tempo, através do contacto com a Secção do
“Mundo de Aventuras”, de que era leitor há alguns anos. Sabendo, por isso, que era habitual o uso de
pseudónimo, e perante a dificuldade que sentiu na escolha, rápida, de um,
acabou, por associação, por perfilhar o “Inspector
Aranha”. É que, naquele problema, o investigador (Marcos Dias), concebido
pelo Autor (Jartur), após resolver o caso,
dirige-se para o “Clube do Aranhiço”. Escolha pouco feliz, de facto, já que
ninguém inicia a construção de um edifício pelo telhado e o principiante
começava, nada modestamente, por se designar “Inspector”…
De qualquer forma, iniciou-se, assim, um longo caminho… In Mundo dos
Passatempos, 1 de Setembro de 2007 Correio Policial, 2 de Junho de 2021 |
PRIMÓRDIOS DA PROBLEMÍSTICA
POLICIÁRIA PORTUGUESA por DOMINGOS CABRAL (do livro com o mesmo título, a
editar) 42 CICLO REINALDO FERREIRA “REPÓRTER
X” CONCURSO DOS CONTOS
MISTERIOSOS Nº 47 REPORTER DIÁVOLO – Antes de lhe contar o mais gracioso episodio da
minha vida – (e olhe que são muitos, visto que passei e passo a existência a
rir-me dos outros) – quero confessar-lhe que me dou ao luxo de ser tarado.
Não julguem que me pico com morfina ou que cômo
areia em “croquettes”… A minha tara consiste
simplesmente em inverter a ordem convencional do tempo… “Quer provas? Ei-las. Aos dois anos sofri do
fígado como qualquer africanista envenenado pelo alcool
– e aos trinta, absolutamente curado do fígado, tive sarampo e tosse
convulsa… Aos vinte anos recolhia a casa à hora do jantar e já não saía; e só
pensava nos graves problemas internacionais; e engulia
volumes inteiros sobre economia; - hoje, que vou a correr para os cincoenta, só me deito de madrugada; só me preocupa o “football” e só leio Julio Verne… E há mais ainda… Ao contrario
do que está estabelecido fui político, fui deputado, fui chefe de partido –
fui ministro; e só depois de ter formado o terceiro ministério é que me
dediquei ao jornalismo… Isso não quer dizer que não tivesse tido sempre
grande tendência para a reportagem, mesmo na época em que era parlamentar. “Mas vamos à historia…
Foi… pouco tempo antes da guerra... Meados de 1913. Dentro da Camara havia
certa corrente estabelecida para a formação de um agrupamento independente –
reunindo elementos de vários partidos -agrupamento que devia causar
retumbâncias de escândalo… “– O inspirador deste maquiavelismo politico era o Dr. Julio B. …,
verdadeiro obsecado por estas embrulhadas e
que se deliciava em complicar as questões – como outros procuram
simplifica-las. “O Dr. Julio B… tinha
uma inexplicável simpatia por mim, uma simpatia por tal forma absolutista que
chegava a ser despótica. Dispunha da minha vontade; resolvia todos os
assuntos, em meu nome; fazia-me aderir ou desligar-me – como se eu fosse seu
pupilo… Verdade seja que eu não só não reagia – como até lhe achava imensa
graça… “Uma tarde chamou-me a um recanto dos Passos
Perdidos e, expondo-me o seu projecto de
organização de um novo partido, avisou-me: “– ...Eu disse já aos meus amigos que tu, Henrique Leal, ias comigo para
onde eu fosse. Não protestei e respondi com certa ironia: “– Já se vê, eu vou para onde tu fores… Julio
e Henrique formam sociedade até á hora da morte… O Dr. Julio não se
apercebeu da ironia e afastou-se satisfeitíssimo com a sua própria influencia. Mas quando naquela noite o encontrei na
“Brasileira” do Chiado, Dr. Julio espumava de
furioso… “– Malditos jornalistas! “– Mas o que foi, homem, o que foi? “– Alguém escutou, esta tarde, a nossa conversa na Camara e estampou-a
em “A Capital”. E mostrou-me a gazeta. A revelação lá estava, em
tipo graúdo, logo na primeira pagina e assinada pelo “Diavolo”. “– Eu hei-de saber quem é este “Diavolo”! berrava o Dr. Julio… Isto era um sábado; e domingo à noite, em “A
Capital”, “Diavolo” reproduzia as ameaças que o Dr. Julio lançara contra o vento no café de “A Brasileira”… Segunda-feira chamou-me de parte e comunicou-me: “– Estou disposto a apanhar esse “reporter”
que, tanto na Camara como nos cafés, escuta as minhas conversas… Deixa-te
estar ao meu lado que eu fingirei que te estou cochichando segredos… De facto, na Sala dos Passos Perdidos paravam com
frequência numerosos jornalistas: o Herculano Nunes, pequeno, olheirento,
grave, fumando como um beduíno; o Avelino d’Almeida, de cabeça inclinada para
a esquerda e sorridente; Paulo Freire, guedelhudo e terrível; o Santos do
Gabão; o Rocha, o Cunha, o Silva… E a suspeita do Dr. Julio
ia pousando sobre todos eles, mas em nenhum encontrava pretexto para se
fixar… “– Mas qual deles seria? - perguntava,
inquieto. Por fim, distraído, resvalou a conversar sobre os
seus projectos políticos… E contou-me o resultado
das novas “démarches”… E naquela noite, “A Capital” reproduzi-as tão exactas… que parecia terem sido fonografadas… “– Isto é de enlouquecer! berrava ele. Como é
que esse “Diavolo” ouviu o que eu te disse,
Henrique? “– Sei lá! respondia. Os “reporters” são homens de grandes recursos… No dia seguinte, por prudencia,
chamou-me ao “bufette”; e antes de me contar as
promessas de adesão que tivera, circunvagou a vista… No outro extremo,
abancados a uma meza, estavam tres
“reporters”: o Rocha, o Cunha e o Silva… Mas, apezar da distancia, falou-me
num murmúrio de prece que me custou compreender… E apesar desse murmúrio, “A
Capital” lá trazia, no dia seguinte, a bisbilhotice do “Diavolo”… “– Oh! Henrique… - exclamava ele, ao encontrar-se comigo, naquela noite.
Ajuda-me a descobrir este malandro que tem ouvidos de tisico e que acaba por
mandar-me para Rilhafoles. “Sexta-feira o Dr. Julio
não esteve com meias medidas. Pediu emprestada ao presidente a chave do
gabinete – e nele se fechou comigo para me comunicar a grande notícia. O novo
Partido estava organisado – e deitaria o governo a
terra se conseguissem fazer “rebentar a bomba” d’improviso… E a “bomba”, ou
seja, o ataque ao ministério, devia dar-se na segunda-feira… “Mas aí! Como de costume, na edição seguinte, em
“A Capital”, “Diavolo” dava a notícia completa… O
Partido do Dr. Julio B… estava organisado
e devia atacar o governo na próxima segunda-feira… “Escusado
será dizer que o Dr. Julio desistiu do seu
maquiavelismo – e ficou sem saber quem era o “Diavolo”…
Afinal, se tivesse dois dedos de cabeça, veria logo que “Diavolo”
só podia ser… O Reporter Diavolo era… * * * NOTA: Foi mantida a grafia da época (1927) CONCURSO DOS CONTOS
MISTERIOSOS Nº 48 UMA PORTUGUEZA E UMA FRANCEZA A guerra surpreendera Bruno Correia quando ele
esvoaçava ainda em redor da sua propria juventude. Não existia no seu espírito outra necessidade do
que a de afastar todas as necessidades serias da vida – para viver a flor dos
prazeres e dos pensamentos. A mocidade era para ele o lago azul e lizo, sem
margens visíveis… Julgava poder deslizar sobre as suas aguas,
até ao infinito. Gozar a existência soavemente,
sem sacudidelas nem preocupações; rir, dizer que “sim” a tudo sempre que o
dizer que “sim” desviasse um duelo de vontade; sempre que o dizer que “sim”
não desse muito trabalho. Os paes tinham sonhado,
antes dele nascer, com um filho que fosse doutor. E
ele, que sempre ambicionara a pintura, dissera que “sim” – e formara-se na
Universidade de Coimbra… Veio a guerra… Indicaram-lhe a Escola de Milicianos…
Era a mais comoda resolução para o seu problema militar… Vieram as primeiras
divisas… Partiu para a Flandres. Bateu-se bem… E bateu-se bem, porque, ser heroe era-lhe mais facil do que
ser covarde. Porque gostava de bater-se - e desagradava-lhe que a opinião
alheia o julgasse mal… E foi ainda, por dizer que “sim”, por cortar pelo
caminho mais curto – que ele acompanhara os camaradas em ferias a Paris – de
onde havia de nascer o mais grave, o mais enriçado problema da sua vida – o
único a que ele não sabia responder nem resolver, por formulas faceis e suaves; a do Amor… * * * Bruno tinha uma noiva em Portugal; com todos os
sintomas dos noivados lisboetas. Cremilda era prima e visinha.
Dezoito anos cálidos, olheirentos, educados na clausura da cozinha, e
precisamente eruditos na química dos petiscos. Os paes
de Cremilda tinham apregoado, desde a puberdade da filha, que a queriam “boa
dona de casa” e pouco metida lá nessas prendas estrangeiras… Diziam na sua
terra que para uma mulher em Portugal ter a garantia desse montepio que se
chama “marido” era preciso saber cozinhar, coser as meias – e ser ignorante
como uma creada… Quanto muito que soubesse desafinar
os pianos e bordar com escamas de peixe… O namoro fora obra da família. A Cremilda não lhe
desagradava o primo – nem outra coisa era de esperar… Educado como fora, para
ela a vida era comer e dormir, sem sair de casa. “Fantasiaram-se” a “lida do
lar”, os petiscos, as meias para coser, - como pretexto a não trabalhar e
ganhar a vida… Nestas condições tornou-se urgente arranjar um marido antes da
morte do pae, que herança não deixava. Bruno não morria de amores pela futura esposa,
imposta pelos paes… Passavam serões tristes, em que
ela ou lhe falava das bisbilhotices das visinhas ou
se fechava sum silencio sonolento e melancolico.
Obedecia-lhe aos menores desejos, como um “lulu” obedece ao assubio do dono. Não tinha vontade propria,
nem ideias, nem podia discutir ou comentar o menor incidente que fosse para
além da sua zona mental: a cozinha, as visinhas e o
folhetim do “Seculo”. Não saía nem cubiçava o
mundo exterior… O cinema, o teatro, as viajens, os
livros – eram luxos, disparates, agentes de depravação, atentados contra a
economia… O seu unico sonho era ter casa, cama,
comer, cosinhar, obedecer – e dormir. E como sabia que não lhe era dado o direito de
escolher outra coisa, achou por bem gostar do Bruno. E quando Bruno partiu
para a guerra choramingou – e começou logo a preparar o enxoval, para se
casarem, quando ele voltasse. E todas as semanas Bruno recebia cartas de
Cremilda, numa letra de menina de escola, cheia de erros de gramatica e que,
invariavelmente diziam a mesma coisa. Bruno leu as primeiras; depois
contentou-se em responder-lhe, sem rasgar os envelopes… * * * Em Paris conheceu Gabriele. Grabiele era midinette. Desde os quinze anos que
vivia independente. Ganhava para comer, para tomar o seu aperitivo antes das
refeições, e para ir ao cinema ou ao teatro, quasi
todas as noites. Era feliz, alegre, vivia; e embora plebeia e educada
á pressa, recebera uma herança de muitos séculos de
civilização e sabia discutir, opinar, encher uma noite ou uma vida inteira a
quem compartilhasse da sua simpatia. Bruno, atontado parecia que aquele paraíso lhe
caía do céu, e acabou por compreender que a felicidade não era lá o dormir socegadamente, enfileirado na vida ao lado duma
companheira obediente, muda, boa cozinheira e ignorante e sem ambições… Esqueceu-se de Cremilda… Acabou a guerra – e com Gabriele
regressou a Portugal. * * * E a tragedia veio, natural, logica, do
entrechoque dos dois amores… Cremilda soube logo que o noivo viera acompanhado
com uma franceza. Essa franceza, para a
sua imaginação, era o proprio diabo de saias, muito
curtas e de labios carminados com o ferro em braza do inferno. Chorou; humilde, mas não resignada. Gabriele apiedou-se da sorte da portugueza – mas não
se mostrou disposta a ceder o coração conquistado. E gritou ao noivo: – Há só uma forma de acabarmos com esta situação:
Voltarmos para França… – Mas… – Exigo-o! Exigia-o! Era a primeira vez que uma mulher
dirigia a Bruno esta palavra! * * * Naquela mesma noite os paes
de Bruno provocaram-lhe um encontro com Cremilda. E Cremilda, olheirenta, com
os olhos queimados pelas lagrimas, deitou-se aos pés do noivo: – Deixa essa mulher! Não poderás nunca ser feliz…
Eu bem sei que ela é mais bela, mais inteligente, mais civilizada do que eu…
Mas deixa-a… Não me abandones… Senão... – Senão… quê?
– Senão eu morro de pena! Eu não quero destruir a
tua ventura… Suplico-te a esmola do teu amor… * * * Bruno não dormiu… Toda a madrugada a passou num vae-e-vem aflitivo em que as ideias circulavam no seu
cérebro como um louco carrussel… Por fim, parando desse agitado passeio, exclamou: – Acabaram-se as hesitações… Levava dentro do seu cérebro uma ideia firme… Escolhera
a mulher que devia acompanhá-lo pela vida fora. E essa só podia ser… * * * Neste conto o
decifrador deve apenas guiar-se pela sua consciência e perguntar-se qual das
duas mulheres escolheria para esposa.
Fontes: Secção
Correio Policial, 2 de Julho de 2021 | Domingos Cabral Blogue Repórter de
Ocasião, 31 de Agosto de 2025 | Luís Rodrigues |
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© DANIEL FALCÃO |
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