CLUBE  DE  DETECTIVES

 

I TORNEIO “O LIDADOR… das CINZENTAS”

Prova nº 5

 

 

O MISTÉRIO DO PUNHAL DE OURO

Autor: M. Constantino

 

Não foi "como por acaso" que conheci a existência da lâmina maldita. Sou representante da segurança na cidade, mas não intangível. No acto de extracção de uma bala vim a conhecer o Dr. Morais Costa, médico – director – proprietário do hospital, um excelente homem de cerca de 60 anos. O conhecimento deu em convivência diária e franca amizade. Surpresa foi que, após breve estágio em França, me apareceu com "mercadoria" anormal. Uma esposa, Eva, de que não fez segredo, e uma arma de contrabando, esta sim, um segredo.

Eva, uma luso-descendente loura, olhos verdes, enfermeira no local do estágio, 30 anos de beleza, princesa de muitos mas rainha de ninguém. O médico mordeu a maçã, quedou-se de dentes cravados. A confissão de ser uma viciada no remédio recomendado no Século XVIII por Zacuto Lusitano, com o qual curou a debilidade proveniente de dispepsia, motivou uma gargalhada. Viciada ou não, ficou.

Assíduo frequentador da casa, uma breve saída de Eva foi ensejo para exibir a "mercadoria" escondida. Vejo, com assombro, o punhal de ouro, pousado num estojo de aço, do qual só o médico tinha a chave, uma espécie de cruz invulgar, pendente de um fio de platina, ao pescoço. Confiou-me que Eva desconhecia o assunto, A arma adquirida a um desconhecido, com a condição de a fazer sair do país, foi, confidencialmente, examinada por um perito. Lembrou-se da minha faceta de coleccionador e tencionava ofertar-ma logo que passasse o perigo de ser contactado. Aliás, um advogado tinha uma carta assinada e autenticada, com instrução para me entregar o estojo e a chave, em caso extremo. Sem chave era impossível abrir o estojo-cofre, pois qualquer tentativa faria disparar um mecanismo tranca.

A arma ocupava o espírito, porém, notava que Morais dava mostras de cansaço. Soube que não era raro, após o jantar, sentar-se no sofá, acender o charuto do dia, tomar um "Porto" servido por Eva e adormecer. Eva desabotoava-lhe a camisa no pescoço e apagava-lhe o charuto…

Entretanto, Eva recebia lições de equitação de Luís, canto com Aldo e, por fim, pintura com Celso, estas no amplo sótão da habitação transformado em estúdio. Eva subia, entusiasmada, com a gabardina repleta de tintas, qual camuflagem, sobre as roupas interiores.

Tomar posição? Os homens, por mais amigos, jamais perdoam a quem lhes revela certas realidades. Os acontecimentos somavam-se. Certo dia um auto-proclamado Dr. Dinis procurou o Director em casa, pois queria integrar-se nos clínicos locais. Tive a nítida convicção de que Eva e Dinis se reconheciam, o que não agradava à mulher. Segundo Rosa, a criada minha informante, começaram a chover telefonemas que Eva recebia mal.

 Numa noite em que Morais estava de serviço, apareceu Dinis. Discutiram: ouviu falar em bigamia e num convite, quase uma ordem, para o acompanhar. Eva foi ter com Celso ao sótão e desceram. Este olhou Dinis com ódio, mas o médico limitara-se a mastigar o resto da banana que tirara da fruteira. Saído Celso, seguiu-se-lhe Dinis, após o que Eva avisou Rosa de que ia tomar ar, não demoraria.

A criada ouviu o carro sair da garagem. E, com efeito, cerca das 22h00 entrava, pouco mais de uma hora, calculou, despiu a gabardina, vestiu um roupão, chegando-se à lareira, calma.

Saía na manhã seguinte, quando deparei com Morais. Operara toda a noite e quando pensava ir descansar, o carro, gelado, não pegou… lembrou-se de que eu o podia levar a casa… Deliciado pelo encargo, preparava-me, quando o telefone soou: era urgente a presença na moradia do Dr. Dinis Fortes, pois este fora encontrado morto pela mulher da limpeza.

Morais instou em acompanhar-me. Na zona pouco habitada evidenciava-se o aparato policial. Entrei com uns "bons dias, minha gente", mas as palavras ficaram-se-me na garganta. Olhei alucinado o corpo: o punhal que há pouco tempo vira num estojo de aço atingira o braço e, parcialmente, o pescoço da vítima, coberto de sangue, e jazia, cravado, talvez no coração. Voltei-me. Morais ficara estático, branco como a cal. Não reagi; deixei o legista e os técnicos entregues às várias tarefas, e arrastei-o para fora de casa, abrindo-lhe a porta do meu carro. Transpirava.

Começaram a chegar informações: – "Não houve arrombamento nem roubo; impressões digitais da vítima e da sra. da limpeza nos móveis; há duas chávenas com chocolate, por beber, sobre a mesa, com impressões digitais só do morto; a mancha de tinta no braço atingido é vermelha escura de cádmio; o carro coberto de neve, à porta, da casa, pertença da vítima, ainda se mostrava morno da "chauffage", o tampo foi rebentado, decerto para roubar a gasolina, de que está vazio; o médico estima a morte para duas/três horas antes, ainda que o calorífero eléctrico tenha, eventualmente, influência na determi-nação; corte na garganta, género machadada, amparado com o braço, não bastante para provocar morte imediata, ainda que esguichasse bastante sangue, a juntar ao estoque na zona do coração, esse sim, fatal."

Mandei o agente ao hospital com ordens para telefonar os resultados e dirigi-me ao carro, cheio de dúvidas íntimas para com o meu amigo. Não falámos. Tomei o caminho de sua casa. Fomos em busca do estojo; Morais tirou a chave do estojo e abriu-o… Vazio! Ouvi, como que ao longe, o grito: – “Não fui eu, juro!”

Fotografei a única impressão digital visível no estojo, e recolhi-a depois pelo processo de papel gelatinado. Na secretária, algumas impressões, de tipos diferentes, inclusive a do estojo, voltei a fotografar. Subi ao sótão. Várias telas utilizadas, atiradas para um canto; no cavalete uma tela recente representava uma maçã "vista bella", não concluída. Fotografei-a, bem como as impressões digitais existentes nos pincéis, voltando a utilizar o processo da recolha directa. Desci. Eva ainda estava no quarto, Morais atirara-se para um sofá como um farrapo. Pedi a Rosa a impressão dos seus dedos e um objecto em que pudesse extrair as de Eva. Trabalho difícil, paciente e compen-sador. A impressão digital no estojo era de Celso.

Imediatamente telefonei para mandar apanhar, não só Celso, mas o trio. Obriguei Morais a ir para a cama e tomar um sedativo; recomendei-lhe silêncio sobre o caso, igualmente a Rosa. Voltei à Sede da Polícia, morto por dentro, vivo por fora. Entretanto, o agente que voltara do hospital apurou que o Dr. Morais entrara ali às 20 horas, de onde só saiu às 8 daquele dia, tendo sido teste-munhada a sua localização total dentro do hospital durante este período. Foi confirmado que o carro não pegava. Tudo demasiado certo. Por certo haveria uma falha…

Só rente à noite me chegou o resultado da autópsia que, com base na deglutição dos alimentos, neste caso uma banana, situava a morte entre as 22h00 e as 24h00 – contrariando as observações no local, que apontavam para uma hora intermédia entre as 6h00 e as 8h00, confirmado, aliás, pelo ambiente de calor dentro do carro. Bem sei que a hora da morte só pode ser apurada no campo das probabilidades... mas enfim… Não entro em conjecturas, gosto de certezas.

Lembrei-me então de um vestígio importante, decisivo, que não me ocorrera enquanto estive em casa de Morais. Mandei-o recolher e entregar no Laboratório, como aliás tinha procedido com todo o material que resultara das minhas diligências.

O resultado do interrogatório do trio era um impasse, um álibi sustentado em conjunto, se bem que no veículo de Celso fosse encontrada uma lata de gasolina extra programa.

E ali estava eu, com bastante lenha para queimar e me queimar… Ia apostar no número certo. Congratulava-me por o punhal estar a bom recato!

 

É altura dos meus caros detectives se pronunciarem, em relatórios devidamente fundamentados, descrevendo o que e como aconteceu.

 

{ publicado no boletim “O LIDADOR… das CINZENTAS” nº 13 de Março de 2005 }

 

SOLUÇÃO

 

 

© DANIEL FALCÃO, 2005