Publicação: “Audiência Grande Porto”

Data: 16 de Setembro de 2017

 

 

Torneio Policiário 2017

 

Problemas

 

 

 

 

TORNEIO POLICIÁRIO 2017

 

PROBLEMA Nº 8

 

UM COPO DE LEITE NOTURNO

Autor: Ma(r)ta Hari

 

O guarda Abílio Necas está cada vez mais desencantado com a sua profissão e com o trabalho que realiza. Confessa-se muito desanimado e cansado de servir apenas para prender pequenos larápios de supermercados, aturar turistas ébrios, admoestar maridos que maltratam esposas, perseguir vendedores ambulantes sem licença para a prática da sua atividade, proteger velhinhas nos dias em que levantam as suas magras pensões e afugentar pessoas sem-abrigo que permanecem pelo dia adentro por debaixo das arcadas onde pernoitam. Ser polícia era o seu sonho de criança, mas não foi isto que ele ambicionou nas noites passadas em claro a imaginar as suas vitórias no combate contra o crime, designadamente nas áreas da prevenção e investigação.

No fim de mais um dia de serviço, em conversa com o seu superior direto, o chefe Machado Faria, Necas confidenciou o seu desânimo pelo tipo de trabalho que lhe é destinado e manifestou o desejo de concretizar o sonho de menino que acalentou ao longo da adolescência, e que ainda conserva, que passaria por executar operações de captura de grandes criminosos após recolha de fortes indícios de crimes, entretanto confirmados em provas irrefutáveis das práticas dos ilícitos de que são objeto de acusação. O chefe Faria, depois de o ouvir repetir até à exaustão que está sem qualquer motivação para os serviços que lhe são destinados, resolveu pô-lo à prova.

– Vamos lá, então, testar a sua vocação para a investigação criminal. E devo adiantar que estamos perante um crime passional. Tome, por isso, a máxima atenção.

– Vamos a isso, chefe.

– Dois casais amigos resolveram alugar uma casa isolada na Serra da Estrela, em tempos de invernia, para passar alguns dias de convívio na neve. António é casado com Berta e Carlos é marido de Dália. Mas o curioso é que Berta é a “ex” de Carlos e Dália é a “ex” de António.

– É muito curioso, na verdade.

– Curioso é ainda o facto de todos eles terem levado consigo obrigações profissionais para cumprir, fazendo-o de forma quase religiosa. António reservara os fins de tarde para despachar assuntos através do telemóvel. Berta ocupava os fins da manhã com troca de e-mails. Carlos passava as primeiras horas de todas as manhãs agarrado ao seu portátil. Dália ganhara o hábito de escrevinhar durante a noite, até meio da madrugada, o que se tornara há muito num vício. 

– Há quanto tempo é que eles trocaram de parceiros?

– Os seus primeiros casamentos dissolveram-se há cerca de seis anos, mudando de parceiros cerca de cinco meses depois. E eles conhecem-se todos há mais de dez anos, desde quando frequentavam a faculdade.

– Uma amizade muito antiga, portanto…

– António e Dália começaram a namorar na festa de finalistas e casaram cerca de quatro meses depois. Hoje, ele é um muito bem-sucedido advogado e ela transformou-se numa afamada escritora de romances policiais.

– E os outros dois?

– Carlos e Berta enamoraram-se logo que se conheceram, no primeiro ano de faculdade, durante a praxe de receção aos caloiros. Hoje, ele é um destacado quadro de uma instituição bancária e ela assumiu recentemente a direção de comunicação de uma importante empresa de relações internacionais, onde trabalha há mais de cinco anos.

– Até aqui, tudo indica que os quatro são mesmo grandes amigos.

– A amizade que os unia era muito grande, de facto. Mas quando os primeiros casamentos se desfizeram houve troca de acusações mútuas sobre a responsabilidade das crises desencadeadas e a amizade dos tempos de faculdade acabou por não resistir às agressões verbais, situação que se normalizou apenas há meia dúzia de meses. E imagine que tudo começou com uma discussão por causa de um copo de leite morno noturno. Agora para celebrar a retoma das relações, decidiram reviver um género de convívio que repetiam frequentemente no passado.

– Bom, mas ó chefe, até agora, ainda não vislumbrei o crime passional.

– Calma. A vítima levantou-se durante a noite, desceu as escadas até ao piso inferior, onde se situa a sala de estar, e deslocou-se à cozinha para cumprir um hábito que ganhara há mais de seis anos.

– E foi nessa altura que se deu o crime?

– Nem mais. Nas primeiras horas da manhã, a vítima foi encontrada por um dos amigos deitada numa poça de sangue com uma faca espetada no peito.

– Quando quem cometeu o crime saiu do seu quarto para assassinar a vítima, a pessoa com quem dormia não acordou, não deu por isso?

– Não, alegando ele que se deitara muito mais cedo, como era aliás normal acontecer todos os dias.

– E a pessoa que vivia com a vítima também não acordou, quando esta saiu do quarto?

– Também não, sublinhando até que as saídas do quarto àquela hora era um hábito diário.

– Mas ninguém ouviu nada, nenhum barulho?

– Nos depoimentos à polícia, todos os ocupantes da casa declararam não ter problemas de insónias, adormecendo mal caem na cama quando se dispõem a dormir. E não me pergunte como, mas os colegas da polícia científica confirmaram que todos falavam verdade. Ah, é verdade: os nossos colegas que investigaram o crime relevaram a existência de um copo com leite que arrefecera em cima do balcão da cozinha.

– É tudo muito estranho!

– E, considerando os elementos conhecidos, o que eu quero saber é: quem morreu, quem matou e quem descobriu o corpo.

 

DESAFIO AO LEITOR:

O que se pede é que o leitor vista a pele do agente Abílio Necas e dê resposta ao chefe Machado Faria, através de um relatório circunstanciado.

 

© DANIEL FALCÃO