Autor

Al-Hain

 

Data

9 de Janeiro de 2011

 

Secção

Policiário [1016]

 

Competição

Campeonato Nacional e Taça de Portugal – 2011

Prova nº 1 (Parte I)

 

Publicação

Público

 

 

MISTÉRIO NO PARAÍSO

Al-Hain

 

A criminalidade já está tão desenvolvida e com tanta falta de espaço cá neste recanto do universo, que até já se expandiu para o paraíso onde criminosos que por cá morrem vão continuar as suas tropelias num outro mundo onde teoricamente tudo deveria ser paz e harmonia.

Como calculam, e muito bem, eu não assisti aos factos relatados na história que se segue. Eles foram-me revelados num contacto espiritual que mantive com um confrade nosso que já não se encontra no meio de nós. Não posso revelar quem era porque as visões que tive, apesar de bastante nítidas, quando se tratava de imagens do rosto, apareciam-me como que esfumadas, escondidas entre rolos de nuvens bastante compactas. Parecia que ele tinha medo de ser reconhecido, ou não o queria ser.

A história que o nosso extinto confrade me contou foi a seguinte: duas quadrilhas rivais de traficantes de droga das favelas do Rio de Janeiro envolveram-se em guerra aberta nos morros que rodeiam a cidade. Quando a polícia chegou foi atirando a tudo quanto mexia e até ao que estava estático.

No meio desta guerra muitos inocentes pereceram e entre estes uma menina de 12 anos, filha de um agente da Polícia Militar (PM), que regressava da escola e se dirigia ao alto do morro para casa da avó, onde ia almoçar.

Não foi possível identificar a arma que matou a menina, mas verificou-se que foi disparada a cerca de cinco metros pelas costas quando ela passava precisamente em frente ao ponto em que o pai estava abrigado. Este, ao ver a filha cair sangrando, esqueceu todas as precauções e correu para a filha que não conseguiu alcançar, pois foi atingido por um tiro que entrou por baixo do braço esquerdo indo a bala alojar-se no coração. A bala que atingiu a menina foi disparada pela mesma arma que disparou o tiro que matou o pai desta. A menina foi levada para o hospital em estado de coma enquanto o pai foi conduzido ao necrotério.

A responsabilidade pelos dois tiros foi atribuída a três suspeitos.

O primeiro era Erivaldo Garcia que, por casualidade ou mera ironia do destino, era também um agente da PM indiciado por envolvimento com o tráfico de drogas e outras tramóias bem mais graves. Quando interrogado afirmou que se encontrava abrigado alguns metros abaixo do local onde se encontrava o colega. Apesar disso afirmou não ter visto nada.

O segundo era Argemiro de Freitas, um conhecido traficante que afirmou não ter conhecimento de nada. Estivera toda a manhã no alto do morro vigiando os movimentos da PM o que foi confirmado por várias pessoas, incluindo a avó da menina.

O terceiro suspeito era Alceu Xavier, um motoqueiro que trabalhava com moto-táxi. Não se lhe conheciam ligações com os grupos de traficantes, mas já havia sido preso por pequenos roubos na prática dos quais nunca usara armas de fogo.

Casualidade ou não, a verdade é que dois dias depois de interrogados os três suspeitos morreram também. Alceu Xavier morreu num acidente de moto quando foi bater com violência de frente com um autocarro. Erivaldo Garcia e Argemiro de Freitas morreram numa troca de tiros entre os traficantes e as forças da ordem quando a PM fez mais uma incursão na favela.

Quando os três chegaram ao paraíso o agente da PM tentou envolver-se em pancadaria com o seu colega, mas sem resultado. Contudo, a bulha foi enorme o que atraiu para o local uma figura indefinida com uma altura enorme e que parecia ter grande autoridade ali. Perante a presença desta personagem os ânimos acalmaram-se e a estranha figura exigiu que lhe contassem o que se passava.

Todos iam falar ao mesmo tempo, mas com um gesto o estranho ser impôs silêncio e de seguida ordenou ao agente da PM, pai da menina, que falasse. Este relatou todos os factos de que tinha conhecimento. Quando terminou, o estranho ser que parecia ser quem mandava ali dirigiu-se à menina e disse-lhe: tu podes ir-te embora, a tua hora ainda não chegou, vai ter com a tua mãe que está à tua espera. Dito isto, duas figuras que pareciam anjos desprenderam-se da enorme personagem e envolvendo a menina levaram-na dali.

Depois, dirigindo-se a um dos quatro disse-lhe: tu vais para o Umbral. Na tua vida sempre praticaste acções que devias combater. Lá ficarás até que te arrependas de todo o mal que praticaste e encontres quem queira de lá tirar-te. Mal estas palavras foram pronunciadas duas medonhas figuras negras se desprenderam do estranho ser que parecia presidir ali a tudo e arrastaram o condenado.

Os outros ficam aí onde irão ser preparados para nova encarnação. Dizendo isto, a estranha figura afastou-se e a cada passo que dava aquilo que parecia ser o seu corpo tomava as mais estranhas formas.

Então os bons não vão para o céu e os maus para o inferno? Como é possível este encontro aqui? – perguntei eu admirado ao nosso ex-companheiro.

Qual quê, meu amigo! Essa do céu e inferno não passa de uma lenda. Ou antes, esses dois lugares existem realmente mas estão concentrados num só e é lá nesse mundo em que tu ainda vives. No inferno estão aqueles que não têm uma casa para morar, dormem nos vãos de escadas ou debaixo de pontes e viadutos e quantas vezes se cobrem apenas com cartões. Não têm uma sopa para comer, nem um médico para os tratar quando estão doentes e se o Inverno for rigoroso, morrem de frio em qualquer canto. No céu estão todos aqueles que têm em abundância o que falta aos outros e que, depois de gastarem fortunas em bens que não lhes fazem falta, ainda lhes sobra dinheiro para depositarem fortunas nos cofres dos bancos.

Então o que é o paraíso? – voltei eu a perguntar.

O nosso ex-confrade, enchendo-se de paciência, lá me foi explicando: o paraíso é um lugar para onde vão todos aqueles que terminam o seu ciclo de vida e vêem para aqui para se prepararem para um novo ciclo. Todos nós praticamos acções reprováveis que representam dívidas que vamos acumulando e que teremos que pagar – é por isso teremos que voltar à vida para as pagar. Alguns, quanto mais vezes reencarnam mais dívidas contraem e voltam à vida para sofrerem sempre. Outros vão melhorando a cada encarnação até que, atingindo a perfeição, ficam aqui para ensinarem e cuidarem daqueles que precisam ser ensinados e cuidados.

Dizendo isto o nosso ex-confrade calou-se e afastou-se sem se despedir.

Foi neste momento que eu acordei ainda assustado com o sonho que tivera.

No outro dia, a menina que estava no hospital saiu de coma e sorriu para a mãe que, sentada a seu lado, chorava. Pronto, agora é só fazer um relatório dizendo-nos quem foi condenado a ir para o Umbral. Devem explicar o significado deste sonho e dizer-nos o que é o Umbral. Podem dizer tudo o que valorize a solução.

 

SOLUÇÃO

© DANIEL FALCÃO