Autor Data 21 de Dezembro de 2008 Secção Policiário [909] Competição Campeonato Nacional e Taça de Portugal – 2008/2009 Prova nº 3 Publicação Público |
O BAÚ DE TEMPICOS A. Raposo & Lena Tempicos tem guardado no
sótão um velho baú. Dentro, para além de muitas teias de aranha, há velharias
e recordações. Taças que ganhou em concursos, algumas –
verdade se diga – cheias de manchas, pois a humidade, esse implacável
inimigo, vai deixando marcas. Além
de bugigangas de valor sentimental, tem o célebre caderno de capa preta onde
foi apontando “ideias” para a possível futura construção de problemas
policiários. Ideias que muitas vezes lhe dão pistas para desenvolver um ou
outro conto-problema. Mais
uma vez, e aproveitando uma tarde de chuva, subiu ao sótão e foi consultar as
memórias. Abriu o baú e olhou o espólio, retirou o caderno de capa preta e
começou a folheá-lo. Abriu
numa das primeiras páginas e leu: “…
Gertrudes fechou a janela. O cheiro a peixe frito vindo da rua, já inundara a
sua sala e até parecia ter-se pegado ao corpo. Era noite de domingo e
apeteceu-lhe ir cedinho para a cama. No dia seguinte, teria que ir ao
ginecologista. Na véspera, sonhara que estava grávida de uma menina. Até lhe
dera nome: entre Carlota e Joaquina, o seu coração iria escolher. Corria
o último domingo do mês. Dali a dois meses, lá iria ela ao Norte, passar a
noite numa festa popular a que raramente faltava, pois era o dia do seu
aniversário, que sempre confraternizara com vinho tinto e alho-porro. A
gravidez confirmou-se, acabando por nascer uma menina, único rebento de mãe
solteira. Gostava
de ouvir os relatos da bola. Benfiquista ferrenha, não entendia como é que o
novo treinador tinha nome de piropo a mulher…” Voltou
a abrir o caderno mais à frente e leu: “…
A história principal deste dia foi a queda do pequeno avião onde viajavam
para o Porto os dois políticos. Joaquina enamorara-se de Carlos há meses. Ele
prometia, mas demorava a decidir-se pelo casamento. E o pior é que Carlos não
era nada fiel a Joaquina. Ao
vislumbrar um rabo de saia, novas discussões. Joaquina estava embeiçada pelo
seu ‘escurinho de olhos verdes’, apesar de tudo. O amor é cego – dizem.
Talvez fosse também o facto de Carlos ter uma desenvolta estampa física.
Talvez porque tivesse trazido de África o feitiço que entontecia as
raparigas. Ninguém nunca conseguiu descobrir a razão de se gostar de alguém.
Pelo menos até hoje. Que eu saiba!” Tempicos voltou a ler já
perto do fim do caderno: “Assassinato
do Dr. Veloso. Naquele
dia, aconteceram várias desgraças. Carlos
fora encontrado por Joaquina nos braços fortes e carnudos da ucraniana. O seu
‘escurinho’ com quem mantinha um prolongado namoro de dez anos e nunca mais
se decidia a casar. Mais uma vez, tinha-lhe pregado a partida. Chorosa e
amargurada, telefonou à sua mãe, contando-lhe os factos. Gertrudes andava muito
adoentada e estava internada. Essas notícias pioravam a situação. Por este
andar, estava a ver que não iria ver a filha casada. Foi
nesse dia também que Veloso apareceu morto. O
corpo do médico tinha uma faca espetada nas costas e jazia estendido na alcatifa
da sala. Ao lado, um lenço de seda, com um monograma bordado com a letra C.
Presumia-se que o lenço teria servido para apagar as impressões digitais na
faca. Na
casa do conhecido médico, vivia Carlos, que Veloso tinha trazido de Angola em
73. Fora
por este encontrado abandonado, no mato, com 13 anos, órfão de pais. Veloso
educou-o, criou-o e pensava perfilhá-lo. Com ele vivia ainda Joaquina, sua
sobrinha, filha da Gertrudes. Veloso, para além destes, não tinha mais
familiares. Tão-pouco testamento. Os
restantes habitantes da casa eram os criados. Nascidos
em distantes paragens, ainda dominavam mal a língua, pois todos tinham vindo
há poucos meses. Isto é válido para o brasileiro ‘mineiro’ Moisés, que fazia
de motorista. Para
além dele, havia a Sofia, uma criada ucraniana bem musculada. Cheng, uma
minúscula chinesinha, que fazia de cozinheira. Chú,
um altivo jardineiro vietnamita. Veloso
era um conceituado médico e podia dizer-se que estava bem de vida, se não
fosse o pequeno e arreliador facto de estar morto! Mas, como já dizia alguém
ilustre, para se morrer só é necessário estar vivo. Quanto
a questões sentimentais, a coisa fiava mais fino. Moisés arrastava a asa a
Joaquina, mas sem o menor êxito. Sofia
queixava-se de ter perdido um dos seus lenços que trouxera da terra. Mas isso
fora já há mais de uma semana. Ainda não vira o lenço que a polícia
apreendera no local do crime, juntamente com a faca, para análise na polícia,
pelo que não se poderia pronunciar. A polícia estava convicta que não haveria
impressões digitais na arma, supostamente limpas pelo lenço.” De
acordo com as informações do caderno de Tempicos,
reconstitua os acontecimentos narrados, começando por indicar o dia, o mês e
o ano em que Gertrudes pensou ir ao médico. Diga
quem poderá ser o proprietário do lenço desaparecido e porquê. Quem
reuniria mais motivos para matar o Dr. Veloso? |
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© DANIEL FALCÃO |
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