Autor Data 5 de Abril de 2015 Secção Policiário [1235] Competição Campeonato Nacional e Taça de
Portugal – 2015 Prova nº 3 (Parte I) Publicação Público |
TEMPICOS E A MÚSICA DE ÁGUA FURTADA A. Raposo & Lena Se
quiserem saber onde actualmente mora Tempicos, tomem nota: Rua do Norte, Bairro Alto, Lisboa,
numas águas furtadas, com vista para o rio. Uma casa às vossas ordens. É
para lá que leva de quando em vez, as suas amigas do
peito, para lhes servir uma amarguinha ou se preferirem observarem, da
janela, o movimento dos navios. Para
embalar o tempo ouve-se uma misteriosa música de fundo de um infindável disco
de jazz. Música de água furtada. Afirma Tempicos.
Música que usa para criar um clima romântico susceptível
de derrubar corações indecisos. Tempicos continua
um indesmentível pinga-amor. Nos
dias de verão o sol entra pela janela e aquece o quarto, iluminando a velha
colcha de patchwork na cama de ferro. A
suster a parede de fundo um velho psiché – fin de siècle – o qual tem em cima uma estranha moldura dourada,
composta por um pano bordado a ponto cruz com umas letras sem nexo. Um enigma
que nenhuma senhora, até hoje, das que lá tem ido a casa, decifrou. Nem mesmo
a arguta dona da pensão Kumbala, uma velha amiga e
personagem de outras histórias, a Fatinha. São
umas misteriosas 15 letras: RAECMOMSIEIOOPT. A
malta da Judiciária tinha-lhe oferecido o quadro quando se reformou. Um
enigma. Ele achou piada. Aos
pés da cama uma estante com a colecção completa dos
policiais Vampiro, para as noites de insónias.
Encimando a estante um óleo de Egon Schiele, um dos
seus pintores preferidos. Comprara-o em Paris. Uma pechincha,
num antiquário falido, em Montmartre, no meio de
outras velharias. A tela era uma obra, datada (1913) e assinada, conhecida
como “declined female nude with legs
spread apart”. Não
seria de admirar se lhe oferecessem um milhão de euros, se a pusesse à venda.
Comprara-a por 100 ou 200 francos, quando da sua passagem última pela cidade
luz. Tempicos vive sozinho – é
solteiro e bom rapaz – mas acontece que anda sempre bem acompanhado. Ao seu
lado na cama, está a sua mais recente amiga. Conheceu-a debaixo de um toldo
na praia da Rocha, este Verão e acabou vindo com ela no seu velho “studebaker” descapotável, dos anos 50. Um carro antigo,
recuperado e muito bem tratado. Amarelo gema de ovo. Lindo de morrer. Ela
veio todo o caminho de cabelos louros ao vento. De nome indizível – rapariga
do leste – mas que traduzido será Carla Vanessa. Um
nome que lhe fazia lembrar outros Carnavais. A
pequena era estudante Erasmus, na área das “letras”. Tudo a ver com Tempicos. Interesse pelos clássicos e pelos copos. Fifty-fifty. Na
mesa-de-cabeceira um cartucho com pastéis de Belém. Os originais. Sempre dão
jeito quando a noite é longa e a fome aperta. Um entretém de boca. A
conversa entre eles era a mais elevada. Discutiam o sexo dos anjos, um tema
sempre quente e actual. E
enquanto a conversa se alonga pela noite dentro e a música de fundo os
embala, a nossa história se esfuma, apetece perguntar aos amigos leitores: –
Será que Tempicos virá a ser um homem rico se puser
o quadro do Schiele à venda na Christie´s? –
Qual a frase enigmática que está bordada a ponto cruz no quadro sobre o
psiché? |
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© DANIEL FALCÃO |
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