Autor Data 22 de Abril de 2007 Secção Policiário [823] Competição Campeonato Nacional e Taça de
Portugal – 2006/2007 Prova nº 6 Publicação Público |
A ESTATUETA DE PEDRA Búfalos Associados Não nos perguntem como é
que esta carta, assinada por Nelinha da Purificação, que nunca terá sido
enviada, nos chegou às mãos. É segredo que não podemos revelar. Mas, em face
da morte violenta da sua autora, ocorrida durante o convívio a que ela alude
na parte final do texto, obtivemos, de sua filha, licença para a divulgar. Só
que parece que também ela está cheia de erros e incorrecções.
Querem os nossos detectives ajudar-nos a detectá-los? “Aos polícias de Domingo: Aqui há tempos um portuguesinho
valente que dá pelo nome de Tempicos, revelou nas páginas do PÚBLICO factos relacionados com
uma viagem que os dois, há anos, fizemos a Paris. Como toda a gente viu, esse
relato estava cheio de incorrecções que em nada
abonavam a favor da imagem do seu autor. Mas adiante… Nessa malfadada viagem que
fiz a Paris em 1972, acompanhada pelo tal “Poirot
de bolso”, houve um acontecimento que ele se absteve de relatar. Naquela
época, a vigilância nos museus não era comparável com a de hoje. Câmaras de
vídeo era coisa que não existia. Podia passear-se à vontade por entre as
obras de arte e quase tocar nelas, se o vigilante estivesse distraído ou
ausente. Foi numa dessas ocasiões que, no museu do Louvre e na zona da arte
fenícia, o nosso Tempicos teve um arrobo amoroso
que o fez agarrar-se a mim, de tal forma que eu não pude evitar encostar-me a
uma vitrina onde se encontrava uma estatueta de pedra que representava um
passaroco de bico adunco. Com o impacto a vitrina abriu-se e a estatueta
ficou, de repente, ao alcance das nossas mãos. Ele olhou em volta, não se
encontrava ninguém à vista, nem sequer o vigilante. E, como diz a sabedoria
popular, a ocasião faz o ladrão. Rapidamente a estatueta, que não era muito
grande, passou para o interior do blusão do meu acompanhante. Saímos
rapidamente do museu, o coração parecia saltar-me do peito, mas a realidade é
que ninguém nos cortou a marcha e fomos pôr a salvo a estatueta no quarto do
hotel de quinta ordem onde dormíamos na Rue St.
André des Arts, ali bem
pertinho do Louvre. O Tempicos,
como manifestação do que ele dizia ser o seu amor por mim, ofereceu-me a
estatueta. Nunca cheguei a saber o seu valor, mas as notícias que no dia
seguinte saíram nos jornais franceses falavam de um valor incalculável e
atribuíam o golpe a um gang certamente bem
organizado. O Tempicos
assegurava-me que aquele era o célebre Falcão de Malta que dera origem ao
famoso romance com o mesmo nome que a colecção
Vampiro há muitos anos publicou com o número 43. Mas eu, embora loira, não
sou assim tão burra e lembro-me muito bem de ter lido o livro e de saber que
o falcão de que ele fala não era uma estatueta de pedra, mas sim de ouro,
revestida de pedras preciosas e mais tarde coberta com uma camada de esmalte
negro para disfarçar o seu alto valor. Além disso, nunca poderia tratar-se de
uma obra proveniente da zona do Mediterrâneo, mas sim de um exemplar de arte
hispano-americana, encontrada em Malta, na província de Paraíba, no Norte do
Brasil. Pelo menos, foi assim que a descreveu o autor do romance, Raymond
Chandler. Ainda hoje desconfio que
aquela generosa oferta foi apenas um pretexto para ser eu a portadora da
preciosidade ao passarmos a fronteira, pois nessa época a alfândega era
bastante rigorosa. A verdade é que, uns tempos depois, já em Portugal, numa
noite em que o Tempicos foi dormir a minha casa, de
manhã, quando acordei, a estatueta tinha desaparecido, bem como o patife. Já quase me tinha esquecido
do assunto, quando um dia, ao folhear uma dessas revistas cor-de-rosa, a
minha alma quase me caía aos pés. No meio de dezenas de fotos de casais com
sorrisos parvos, lá estava uma série de fotos em casa de um escritor de
sucesso. Entre elas havia uma que o mostrava na sua secretária onde, entre
diversos objectos, os meus olhos vidraram na imagem
da estatueta tão minha conhecida. Não podia haver dúvida. Era o passaroco de
pedra que me tinha sido oferecido em Paris e roubado em Lisboa pelo Tempicos. Provavelmente o policiazeco
havia vendido o valioso objecto a um qualquer
comerciante de velharias e o tal escritor de sucesso tê-lo-ia comprado. Não descansei enquanto não
tratei de recuperar a estatueta. E confesso que foi um desafio às minhas
capacidades de sedução. Consegui localizar o escritor. Morava com dois
sobrinhos numa moradia nos arredores de Lisboa. Através de um amigo comum de
nome Falcão (que coincidência…) fiz-me amiga de um sobrinho e depressa
percebi que ele nutria um enorme ciúme pela carreira do tio. Ao fim de algum
tempo já éramos íntimos e incuti-lhe aos poucos a ideia de se ver livre dele.
A mim o que me interessava era a estatueta que vi no escritório do afamado
escritor. Só que tirá-la de lá era demasiado arriscado. Foi então que entrou em
cena outra personagem. Na festa da passagem do milénio travei conhecimento
com um jovem que se dedicava a serviços pouco limpos, entre os quais a
eliminação de pessoas indesejáveis a troco de alguns patacos. Tinha um metro
e noventa de altura, usava sempre botas cardadas e dava pelo nome de
“Meiguinho”. O plano foi minuciosamente
urdido entre mim, ele e o sobrinho do escritor. E o “negócio” consumou-se
conforme o combinado. Atraindo o escritor à janela do rés-do-chão, não
estando mais ninguém em casa, o “Meiguinho” despachou-o com um tiro certeiro.
Nunca chegou a descobrir-se o autor do crime e a estatueta voltou às minhas
mãos, pois fazia parte do pagamento aprazado com o sobrinho do escritor. A
hora combinada para o “serviço” era entre as cinco e as cinco e um quarto da
tarde. Contou-me o “Meiguinho” que o sobrinho do morto se atrasara um pouco
para lhe entregar a estatueta, última prestação do pagamento. Mas por fim o
jovem lá chegou e a operação concluiu-se. A vivenda onde o escritor
habitava ficava perto da Praia do Magoito e, por razões de segurança, eu não
tinha acompanhado o “Meiguinho” na fase final da missão. Depois de o ter
deixado perto da casa, fui esperar por ele com o meu carro na Praia da Aguda,
perto de Fontanelas, onde viria ter comigo quando tudo estivesse acabado. A
Praia do Magoito liga com a da Aguda, que lhe fica a norte, e só quando a
maré está vazia é possível passar a pé pelo areal de uma para a outra. Estava
uma noite clara de plena lua cheia e pela areia molhada o caminho não tinha
dificuldades, havendo cerca de 2 quilómetros a percorrer. Não tive de esperar
muito. Pouco passava das três da manhã, quando o “Meiguinho” me apareceu
subindo as escadas que servem de acesso à Praia da Aguda com a notícia de que
o “trabalhinho” acabara de ser feito e entregando-me a desejada estatueta de
pedra. Agora que tenho o “bicho”
em meu poder só penso em vingar-me de todas as amarguras por que esse
famigerado Tempicos me fez passar. No próximo dia
24 de Maio, um domingo, tenciono ir até ao Museu
Nacional de Teatro, em Lisboa, onde terá lugar o 2º Convívio da Tertúlia
Policiária da Liberdade. Ele estará lá certamente e eu poderei, com escândalo
público, denunciar as patifarias que esse traidor me fez ao longo dos anos. E
vou levar comigo a estatueta para o caso de ter que lhe dar com ela na
cabeça.” |
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© DANIEL FALCÃO |
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