Autor Data 15 de Novembro de 2009 Secção Competição Problema nº 4 Publicação O Almeirinense |
O QUINTETO ERA DA CORDA Búfalos Associados O
concerto terminou por volta da meia-noite. Depois fomos cear num restaurante
muito simpático onde estivemos até cerca das duas horas. Comemos bem e
bebemos melhor. Mas o ambiente entre os elementos do grupo tem andado algo
tenso. Eu fui o primeiro a sair e a vir sozinho, a pé, para o hotel, que fica
perto. No dia seguinte era preciso acordar cedo, tínhamos um concerto em
Sagres e muitos quilómetros a percorrer. Fui logo para o meu quarto e devo
ter adormecido quase sem dar por isso, pois quando acordei a meio da noite
com a agitação toda que andou por aí, ainda estava vestido e a dormir em cima
da cama. Antes disso não dei por nada. Acho que tinha bebido um pouco demais.
Quando abri a porta do quarto vi o Damião, que dormia no meu andar e que me
gritou: – “Parece que esfaquearam o Quim!” Fiquei siderado. Disse: – “Não
pode ser!” – “É verdade! Ligaram-me da recepção.”
Não sei que horas eram porque tinha desligado o telemóvel como de costume.
Corremos para os elevadores, mas estavam parados. E pelas escadas só
conseguimos descer até ao 2º andar onde um soldado da GNR
não nos deixou passar. Voltámos a subir e entretanto o telefone do meu quarto
começou a tocar. Atendi, perguntei o que se passava e só me disseram que não
saísse do quarto. Liguei então o telemóvel e eram quatro menos um quarto.” Esta
foi a declaração que o Sargento Paes recolheu, já
passava das 4 horas da manhã, de David, contrabaixista do QUINTETO DA CORDA,
conjunto de jazz que tinha tocado nessa noite em Caminha, mas que ficara
hospedado em Vila Praia de Âncora num pequeno hotel frente ao mar. Paes tinha uma forte costela de policiarista
e fora encarregado pelo seu velho amigo Inspector
Garrett, de Viana do Castelo, de colher declarações a quente dos mais próximos
envolvidos, enquanto ele próprio não chegava ao local do crime. Cornélio
era o baterista e fora ele quem encontrara o corpo: – “Eu e o Quim saímos do
restaurante logo a seguir ao David e viemos para o hotel. Estávamos ambos bem
bebidos. O Quim subiu logo ao quarto dele mas eu ainda fiquei numa sala ao
lado da recepção a ver na televisão os comentários
sobre os jogos de futebol desse dia. Não estava preocupado com as horas
porque há sempre um de nós (e desta vez não era eu…)
encarregado de acordar todos antes das partidas. Deviam ser umas três
horas quando me fui deitar. Cheguei ao meu andar e, ao sair do elevador, vi
um vulto a sair de um quarto e correr para as escadas que ficam ao fundo do
corredor. As luzes do tecto acendem por sensor, mas
como demoram um certo tempo a reagir, quando acenderam já o homem tinha
desaparecido. Não consegui ver quem era. Fui até à porta que ficara aberta,
entrei e pude ver o Quim deitado de costas no chão, com os olhos abertos e
uma faca espetada no peito. O sangue corria já para a alcatifa e ensopava a
camisa. Não sei se fiz bem mas tomei-lhe o pulso, palpei-lhe a veia do
pescoço e fiquei com a certeza de que estava morto. Corri à recepção para dar o alarme, estava tão nervoso que nem
fui pelo elevador que ainda devia estar no 2º andar. Desci pelas escadas,
talvez por pensar que ainda podia encontrar o possível assassino, mas não vi
ninguém, nem ouvi nenhuma porta fechar-se.” A
recepcionista confirmou o essencial das anteriores
declarações, acrescentando: –
”Pelas três horas e cinco minutos, já todos os elementos do grupo estavam nos
quartos, fui abordada pelo hóspede Cornélio, que tinha acabado de subir.
Informou-me, assustado, que havia um colega seu morto no 2º andar. Pela
descrição percebi que era no quarto 205. Telefonei imediatamente para a GNR
de Caminha e vinte minutos depois chegava o Sargento Paes
acompanhado por três guardas, os quais montaram logo um dispositivo de
segurança para ninguém fugir, nem aceder ao quarto do crime. E foi mesmo
daqui que o Sargento ligou para a Judiciária de Viana. Entretanto fez-me
ligar para os quartos de todos os componentes do grupo para os acordar um a
um, dizendo apenas que esperassem nos seus quartos onde o Sargento os iria
ouvir. Também me pediu que desligasse os elevadores pois montara vigilância
apenas nos três patamares das escadas.” Os
restantes elementos do grupo, aparentando razoáveis ressacas, foram todos
ouvidos. Telo, o trompetista, parecia-lhe, no meio da embriaguez, ter ouvido
uma violenta discussão no andar de baixo. Pouco depois foi à casa de banho e
julgou ter ouvido alguém correndo no corredor e uma porta a fechar-se. Já
tinha adormecido de novo quando lhe ligaram da recepção.
Tomás, o saxofonista, disse que corria o boato de que o Quim, o pianista e director musical, andava metido com a mulher de outro
colega, daí o mal-estar que todos notavam, mas ninguém sabia quem ela era,
ele como era solteiro e nem apreciava mulheres, estava tranquilo. Damião, o
técnico de som do grupo, declarou-se arrasado com a notícia da morte do amigo
e muito preocupado em avisar a organização de Sagres para cancelar o previsto
concerto, era ele que conduzia a carrinha que ainda não estava paga na
totalidade, como iria ser, agora que o chefe do conjunto desaparecera? Quando
o Inspector Garrett chegou, recebeu do Sargento Paes todas estas informações e ainda uma folha A4 com as
seguintes –
O hotel tem, além do rés-do-chão, 3 andares com 14 quartos em cada. –
Os quartos ímpares têm janelas viradas para a frente, ao contrário dos pares. –
A saída dos elevadores é feita para o lado da frente do hotel, ficando seis
quartos para o lado direito e oito para o esquerdo. Na ponta dos corredores,
do lado esquerdo, fica o bloco de escadas, único acesso aos andares quando os
elevadores estão parados. –
Em frente à porta dos elevadores está um dístico que diz: “Quartos de 101 a
108 e Escadas”, com uma seta para a esquerda, e “Quartos de 109 a 114”, com
uma sete para a direita. Nos andares 2º e 3º o sistema é o mesmo. –
Quim, que além de pianista também se encarregava das contas do grupo, era
solteiro e tinha fama de mulherengo. Além dele e do Tomás, os outros quatro
parceiros do grupo eram casados. –
A faca espetada no peito, bem na zona do coração, tinha gravada no punho a
identificação do restaurante onde decorrera a ceia. Era uma daquelas facas de
serrilha, pontiagudas, que se usam para cortar os bifes. –
Caídos no chão do quarto, entre o corpo e a porta, foram encontrados um
recibo de portagem de auto-estrada com data do dia
anterior, outro recibo de gasóleo e uma pequena folha de bloco com os
seguintes apontamentos a lápis: “Tomás 109, Quim 205, Cornélio 211, Telo 305,
David 307”. Os papéis estavam algo amachucados. Perto do corpo um guardanapo
de pano branco com manchas de sangue. –
Todos os quartos do pequeno hotel, com excepção dos
nºs 109, 205, 211, 305, 307 e 309, estavam ocupados por uma excursão de
turistas alemães que recolheram cedo aos seus quartos pois partiriam pelas 7
horas, com destino ao seu país. –
Só um quarto pedira para ser despertado às 7h30, o nº 309. “Belo
trabalho, Paes, belo trabalho”, disse o Inspector após tomar conhecimento de tudo. “Creio mesmo
que já calculo quem matou o pianista. E tu?” “Eu?
Não tenho ainda nenhum palpite.” “Pois
eu, sim. E mais: é curiosa a forma com eles deram o nome ao conjunto. Deste
por isso?” Serão
os leitores capazes de deslindar e justificar os palpites do Inspector Garrett? |
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© DANIEL FALCÃO |
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