Autor

Búfalos Associados

 

Data

10 de Julho de 2011

 

Secção

Policiário [1042]

 

Competição

Campeonato Nacional e Taça de Portugal – 2011

Prova nº 7 (Parte II)

 

Publicação

Público

 

 

MANUAL DE INTERPRETAÇÃO DOS SONHOS

Búfalos Associados

 

“Às dez horas Carlos vestia-se para o baile dos Cohen.

Fora, a noite fizera-se tenebrosa, com lufadas de vento, pancadas de água, que a cada instante batiam agrestemente o jardim. Ali, no gabinete de toilette, errava no ar tépido um vago aroma de sabonete e de bom charuto.

Sobre as duas cómodas de pau-preto, marchetadas a marfim, duas serpentinas de velho bronze erguiam os seus molhos de velas acesas, pondo largos reflexos doces sobre a seda castanha das paredes. Ao lado do alto espelho-psyché alastrava-se já, em cima de uma poltrona, o dominó de cetim negro com um laço azul-claro. De repente, o timbre eléctrico da porta retiniu, apressado e violento. – Talvez outra surpresa – murmurou Carlos – Hoje é o dia das surpresas.”

O Inspector Garrett interrompeu aqui a leitura, vencido pelo sono.

O livro que sempre tinha à cabeceira e do qual nunca deixava de ler algumas páginas antes de adormecer, deslizou para o tapete onde acabava invariavelmente todas as noites.

Offenbach continuou ainda a fazer-se ouvir num volume discreto, até o CD terminar. Garrett adormeceu profundamente. E nessa noite teve mais uma vez um estranho sonho onde lhe apareciam as figuras do romance que lia pela milionésima vez.

Mas as histórias que viviam nos seus sonhos eram sempre muito diferentes das que tinham sido imaginadas pelo genial autor, se bem que muitas vezes usassem as frases que Garrett sabia já de cor e salteado.

Para Garrett um dos mistérios do romance era o título do livro que Maria Eduarda andaria a ler e que Carlos descobriu sobre uma mesa em sua casa.

No dia seguinte, pela manhã, o Inspector reconstituía o sonho que começara no exacto momento em que interrompera a leitura e adormecera.

Garrett era agora Carlos da Maia. Batista fora abrir. Pela escada acima, duas penas negras de galo ondearam, um manto escarlate esvoaçou – e o Ega estava diante dele, vestido de Mefistófeles! Garrett apenas pôde dizer: ”Bravo!” – o aspecto de Ega emudeceu-o. Sentia-se bem a aflição em que vinha. – “Tu sabes o que me sucedeu? Cheguei a casa dos Cohen mais cedo, como tínhamos combinado. Ao entrar na sala já estavam algumas pessoas, um sujeito de urso e uma senhora não sei de quê, de tirolesa creio eu. O Cohen, de beduíno, vem direito a mim e diz-me: “Você, seu infame, ponha-se já no meio da rua, senão, diante desta gente, corro-o a pontapés!” Está claro que descobriu tudo. Como, não sei. Nós sempre tivemos o máximo cuidado. Alguma criada que deu com a língua nos dentes. Alguma carta anónima. Não sei. Mas eu mato-o. À pistola, a dez passos.”

– “Ouve lá, Ega, que fizeste da espada espanhola que eu te emprestei esta manhã, para a mascarada? Não a vejo contigo”.

– “Sei lá, se calhar caiu ou alguém ma roubou quando eu vinha a sair. Mas eu quero matá-lo!”

E as duas penas de galo ondeavam-lhe na gorra, dando-lhe uma ferocidade teatral e cómica.

– “É um cobarde, é um canalha. E banqueiro ainda por cima. Não tem nada que se aproveite. A não ser claro, a mulher. A Raquel, que corpo de mulher, se vocês soubessem. Oh, meninos, que corpo… imaginem vocês um peito…”

– “Chega, disse Garrett, tu estás bêbado!” – “Essa agora! Se há coisa que eu não consigo é empiteirar-me!”

Neste momento irrompeu pela sala dentro, mascarado como o selvagem Nelusko, da ópera A Africana, o Dâmaso, com as gordurosas banhas a sobrarem do traje escasso:

– “Mataste-a! Oh, John, como foi que tu pudeste matar a Raquel Cohen?” E apontava para Ega que não escondia o seu espanto:

– “Que estás para aí a dizer? Eu saí lá de casa sem sequer a ver. Fui corrido pela besta do marido! Tu é que eu sei muito bem que andavas a catrapiscá-la. Se calhar foste tu que a mataste!”

– “Eu?” – disse o outro – “Quando lá cheguei só ouvi toda a gente em correrias a dizer: “Mataram a Sr.ª D. Raquel à espadeirada!” E vim logo para aqui.”

Nesta altura já tinham entrado pelo sonho de Garrett adentro o Crujes mascarado de Beethoven com uma farta cabeleira grisalha, o Craft vestido de Sherlock Holmes com cachimbo e tudo, e o próprio Cohen de beduíno, que se mostrava inconsolável:

– “Que horror! Fui traído, é um facto, mas que diabo, bastava uma coça, não era caso para isto! E logo com aquela espada terrível!” Dâmaso não se conteve:

– “Espada terrível não, era apenas uma espada de Toledo fina e vibrante, de copos trabalhados como uma renda.”

–“Sim” – confirmou Ega – “Se era a espada que eu levava, não era um daqueles espadões de ferro, ou uma durindana tremenda dos brutos que conquistaram a Índia! Está explicado porque ma roubaram”.

Cohen voltou à carga:

– “E tu, Crujes, que estás para aí calado. Claro que te mascaraste de Beethoven só para lhe agradar. Eu bem vejo como olhas para ela quando tocas a Patética. Porque é que te ausentaste da sala depois do Ega sair? Pensas que não reparei?”

Crujes, com a sua timidez, só conseguiu corar e balbuciar: – “Fui ver se o piano do salão estava afinado… Mas tu eras de nós todos o que tinha mais razões para matar a tua mulher.”

– “Perdão, respondeu Cohen, pelo que vejo, ciúmes dela tínhamos nós todos.”

Fez-se um silêncio que só foi cortado pela voz do Garrett que ousou perguntar de chofre:

– “Mas afinal qual de vocês quatro matou a Raquel Cohen?” Ninguém respondeu. Foi quando se fez ouvir o Sherlock Holmes, aliás Craft, que, tirando uma fumaça do seu cachimbo de espuma, adiantou:

– “Eu sei quem foi, não tenho dúvidas. Elementar, meus caros amigos…”

Garrett acordou antes de ouvir o resto. Mas também ele não tinha dúvidas. E quando nos contou a história deixou a pergunta: “Quem no meu sonho pode ser suspeito de ter assassinado a Raquel Cohen?”

 

A – O Cohen?

B – O Ega?

C – O Dâmaso?

D – O Crujes?

 

SOLUÇÃO

© DANIEL FALCÃO