Autor Data 3 de Julho de 2016 Secção Policiário [1300] Competição Campeonato Nacional e Taça de
Portugal – 2016 Prova nº 6 (Parte I) Publicação Público |
UMA TRAGÉDIA FAMILIAR Búfalos Associados O
inspector Garrett nunca perdera o hábito de, antes de adormecer, reler
algumas páginas de um bom romance, num prazenteiro regresso ao passado, o que
lhe estimulava recordações, melhores ou menos boas conforme os casos. Naquela
noite chegara mais uma vez ao fim do livro e não conseguiu reprimir o gesto
de voltar ao início e ler as primeiras palavras que lhe lembravam sempre a
tragédia familiar que tantas vezes a sua tia Laurinda comentara com ele:
"As famílias felizes parecem-se todas; as famílias infelizes são-no cada
uma à sua maneira." O
sucedido remontara aos finais do século dezanove, quando a trisavó Carolina
faleceu esmagada por um combóio na estação do Rossio, tragédia que enlutou a
família e chegou mesmo a agitar a sociedade lisboeta da época, uma vez que a
senhora era basto conhecida e detinha uma importante fortuna, a qual veio a
acabar nos bolsos do marido, o trisavô Leopoldo, que também ficou curador da
parte que caberia à criança que tinha nascido algum tempo antes. E a tia
Laurinda, sempre que contava a história, não reprimia o desespero por o seu
bisavô Leopoldo ter esbanjado toda a fortuna, em lautas estúrdias em Paris no
seu luxuoso apartamento dos Champs-Élysées, onde reunia a melhor sociedade de
Paris. Graças ao gastador bisavô ficou a família na penúria, lamentava-se
amiúde a tia Laurinda aos amigos mais chegados. Tudo
aconteceu numa manhã dos primeiros dias de Março de 1900, e durante anos
permaneceu a dúvida se teria sido suicídio ou se alguém teria empurrado a
senhora para a linha quando da partida do combóio. Essa dúvida era um dos
pormenores em que o episódio familiar se afastava do romance. Havia na altura
dois suspeitos: o marido e Adérito, um amigo que por vezes era visto na
companhia da senhora. O caso chegou aos tribunais, pois não faltaram as
acusações contra cada um dos homens, os quais, segundo a boataria popular,
teriam razões para o possível crime. A verdade é que corriam vozes por entre
a sociedade lisboeta de que a Carolina, à época no esplendor dos seus vinte e
sete anos, se teria envolvido, já depois de casada, num "affaire"
com o tal Adérito, um jovem oficial de cavalaria, o que dificilmente escapara
à bisbilhotice nacional e todos sabiam ser verdade. Isso e a fortuna da
senhora levantavam as maiores suspeitas de um crime passional. Mas a verdade
é que todos saíram ilibados do julgamento, no qual acabou por concluir-se que
tudo não passara de suicídio, por falta de provas contra o Leopoldo, contra o
Adérito, ou contra quem quer que fosse. Talvez que, de facto, a Carolina, num
acto quase tresloucado, não tenha conseguido resistir ao remorso e ao vexame
do adultério, atirando-se para debaixo de um combóio. Mas
mais tarde, de vez em quando, em família, o caso vinha à baila. E não
faltavam as suspeitas sobre o Leopoldo, das quais ele se defendia, enquanto
foi vivo, calorosa e veementemente. E Garrett ainda se recordava de ter
ouvido falar das razões que o seu velho trisavô apontava, sempre que a sua
inocência era posta em causa. Que nem sequer estaria em Portugal à data do
incidente, já teria partido para Paris, pois não queria perder todos os
acontecimentos ligados à Exposição Universal desse ano, principalmente porque
por nada deste mundo queria faltar à inauguração da Torre Eiffel. Lembrava-se
perfeitamente da data porque foi nesse ano que em Agosto viria a morrer em
Paris o Eça de Queiroz. Lembrava-se ainda porque esse ano era bissexto e não
mais esquecera ter partido para Paris no dia 29 de Fevereiro. Outra coisa que
não esquecera tinha sido o falecimento do poeta António Nobre ocorrido em
Março desse ano. Quanto
ao Adérito, foi ilibado por ter conseguido provar que à hora da tragédia,
estava muito pacatamente a comer um belo arroz de lampreia numa casa de pasto
em Tomar. –
"O bisavô nunca foi muito dado a falar verdade e o facto de se ter
livrado da acusação talvez tenha ficado a dever-se à ineficácia da justiça da
época. Mas as dúvidas perduraram." – concluía a Tia Laurinda. E
o inspector Garrett inquiria os seus alunos, quando lhes contava a história:
"Será que ficarão sempre dúvidas sobre o sucedido? Há
certamente coisas a dizer sobre esta tragédia familiar e tudo o que a rodeia. Quem começa?” |
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© DANIEL FALCÃO |
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