Autor Data 7 de Maio de 2017 Secção Policiário [1344] Competição Campeonato Nacional e Taça de
Portugal – 2017 Prova nº 4 (Parte I) Publicação Público |
O FAQUEIRO DA VISCONDESSA Búfalos Associados "Este
anno de 1910 tem sido muito bom aconteceu tanta coisa importante meu Deus mas
aqui por casa foi o diabo os patrões ficaram muito zangados com o roubo do faqueiro
era vê-los a arrepellarem-se e a gritarem pelos cantos fomos roubados fomos
roubados estes senhores da alta não aguentam um dissabor vão-se logo abaixo a
nós que não temos nada para roubar chega a dar vontade de rir nunca vi gente
tão agarrada ao dinheiro mas eu vou contar o que acconteceu na primeira
terça-feira de cada mez os senhores viscondes cá de casa vão sempre de visita
a umas primas da senhora que vivem em Pinteus não é longe mas eu não sei
muito bem onde fica porque estou aqui só há oito mezes a servir nesta casa de
manhã mandaram o cocheiro Mateus aparelhar a carruagem e depois do almoço
seriam para ahi duas horas quando elles sairam d'aqui e estava um dia lindo
deste outubro não ficou ninguem cá em casa que os senhores não gostam disso quando
saem pois são muito desconfiados elle depois trouxe-os lá pelas sete da tarde
que é o costume quando chegaram é que foi o eschandalo porque a senhora viu
logo que o armário da salla de jantar estava aberto e tinha desapparecido um
faqueiro de prata para 12 pessoas muito antigo e vallioso que foi usado um
dia que El-Rei cá veio jantar eu ainda na véspera tinha estado a limpá-lo
juntamente com as outras pratas estiveram ahi os policias uns dias depois e o
que nos disseram é que só podia ter sido um de nós criados porque os senhores
tinham deixado portas e portões bem fechados e só nós é que tínhamos todos as
chaves para se poder entrar e sahir deixando tudo fechado então os policias
depois de nos revistarem os quartos quiseram saber o que cada um de nós tinha
feito naquela tarde porque sospeitavam de todos eu disse que agora que estou
um pouco melhor da saúde passei a tarde em casa da Gertrudes uma rapariga que
mora lá p'ró centro e com quem me dou muito bem e que nesse dia tinha ido
para Lisboa ela tinha-me emprestado a chave para lá ir na ausencia dela dar
um jeito nas coisas que andavam muito desarrummadas eu aproveitei e fui lá a
Alzira cosinheira disse que depois de servidos os almoços esteve toda a tarde
desde as duas em casa do conversado e com a família delle o José jardineiro
disse que almoçou na tasca do Ti Chico e depois aí pelas trez horas começou a
ouvir gritos e vivas e foi até á sede do município onde falou com muita gente
e houve toda a tarde grande festa na rua porque nesse mesmo dia tinha sido
proclamada a Republica que era uma coisa que já se esperava há tempos o
Mateus disse que não tinha saído de Pinteus ficou lá a conviver com o pessoal
da casa antes de trazer os senhores de volta eu sei estas coisas todas porque
sem querer ouvi os polícias a falar com todos e no outro dia também os ouvi
dizer que se alguem tivesse mentido seria certamente o culpado tinham já
feito a confirmação das coisas que nós todos dissemos e estava tudo bem mas
eu sei que alguem mentiu e a policia deixou-se enganar os senhores estão
desesperados eu estou pr'aqui a escrever isto mas não conto tudo porque ando
a scismar que o José me anda a ler as coisas que eu escrevo eu desde a
eschola que gosto muito da escripta mas elle no outro dia disse-me assim tu
não escreves mal mas falta-te a pontuação e eu a partir dahi fiquei
desconfiada que elle anda a ler-me e eu não quero" –
"Basta, Francisco, não leias mais. O que é engraçado é que esta passagem
que te dei para ler é só por si um verdadeiro problema policial, só lhe falta
a pergunta final." – disse a Tia Laurinda tirando o caderno das mãos de
Garrett – "Imagina que foi escrita por uma criada de servir neste
caderno de capa de oleado preto que estava no meio das coisas que apareceram
na casa do teu bisavô Henrique, filho da malograda trisavó Carolina. Quando
ele casou em 1919 teve uma criada de nome Celestina que morreu pouco depois e
que uns anos antes tinha estado empregada em casa dos Viscondes de Penalva,
que viviam numa quinta em Loures. A rapariga tinha, como vês, o hábito de
escrever uma espécie de diário onde relatava coisas importantes." –
"Curioso." – respondeu o inspector Garrett – "Isso lembra-me
qualquer coisa, um livro que eu li quando era adolescente e andava a aprender
francês." –
"Tens razão. Faz lembrar, ainda que só em parte, um romance que o teu
trisavô Leopoldo tinha trazido de Paris nos princípios do século XX. A obra
provocou por lá grande celeuma. Mas diz-me, tens alguma ideia sobre o
problema? Quem poderia ter roubado o faqueiro da Viscondessa?" –
"Calma tia, deixe-me ler outra vez, isto não vai assim à primeira." E à segunda,
amigo leitor, será que consegue indicar e justificar quem poderá ter faltado
à verdade e foi provavelmente o ladrão? |
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© DANIEL FALCÃO |
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