Autor Data Janeiro de 1979 Secção Enigma Policiário [34] Competição Taça
de Portugal em Problemas Policiários e Torneio Paralelo 4º Problema Publicação Passatempo [56] |
INVESTIGAÇÃO EM AZUL Constantino A
tarde vai dizer o último adeus. O Sol, vermelho num fundo azul a esconder-se por
detrás do monte. A luz que ainda se derrama pela lezíria ilumina os tocos dos
salgueiros chorões, dos esguios choupos, pratea o
manso rio que corre ao lado da estrada areosa, traz-me um misto de doçura e
quietude de espírito inigualáveis. O
velho serviçal que me esperara junto da estação do caminho
de ferro e me vinha dando conta dos últimos acontecimentos citadinos,
calara-se; o único ruído no espaço é o leve trepidar das rodas da «charrette» e o toc toc das patas do possante alazão. Ao
longe começa a perceber-se uma mancha crescente de pó; é a boiada por entre
as oliveiras, guiada pelos atilados cabrestos, campinos curvados sobre as
montadas, barretes verdes enterrados pela testa morena, olhos vivos, alerta,
pampilhos em riste, que se dirige para as moitas onde pernoitarão. Soberbo
quadro do meu amado Ribatejo! O
cocheiro enrola o tabaco numa mortalha com uma só mão, enquanto a outra
segura firme as rédeas. Olha-me e, perante o meu olhar interrogativo e
extasiado, aquele rosto rugoso de mil sois, orgulhoso porém, elucida-me: – É
o gado do patrão novo, Sr. Dr.! Bons animais, é pena… mas não, o
administrador não é home p’ra
isso… E como para esquecer um pensamento menos do seu agrado, incita o
cavalo: – Anda «gadelha», vamos lá! As
palavras do homem recordam-me ao que vim. O telefonema ansioso e desesperado
de Gabriel Duarte, exigia o conselho da minha
experiência forense. Tal como servira o tio, o velho e particular amigo Dr. Fermelo, servia agora o sobrinho Gabriel. Quem
fora o Dr. Fermelo? Médico
por profissão, abastado lavrador por vocação, grande benemérito por coração,
ser justo e bom, sem procurar prémio ou glória, porquanto, a maior recompensa
vinha-lhe da alegria íntima de minorar o sofrimento alheio, seria, para si, o
vértice do seu destino humano. Verdade
que, apesar das obras caritativas e vastos donativos com que dotava a sua
terra e o seu povo, continuava a prosperar. E, a tal ponto que, com a
velhice, viu-se na necessidade de arranjar um administrador para a sua vasta
casa agrícola. Contratou, para esse fim, Fernando António, homem pouco
instruído mas inteligente e ambicioso, não desprovido de astúcia para em
poucos anos criar raízes de uma pequena fortuna pessoal, como não era isento
do poder de cativar o velho médico. Este simpatizava deveras com o feitio
desempoeirado do administrador, que tinha sempre uma palavra gentil em
relação ao patrão, uma anedota engraçada para contar ou traço pitoresco local
para destacar. Enfim, tornou-se o homem de confiança, o braço direito do
velho. Mas,
o homem põe e Deus dispõe. Quatro anos ruinosos nos campos, a construção dum
hospital dispendioso, abalaram as finanças do bom doutor, levando-o ao que se
supõe, a recorrer a um habilidoso, quiçá manhoso, oferecimento de crédito por
parte de Fernando António. Entretanto,
no Outono de 1975, Fermelo deu a alma ao Criador. E
aqui começa a fase dramática dos interesses: o falecido testamentara
liberalmente o município com vários prédios urbanos de rendimento, mais que
generosamente o administrador, sendo herdeiro do remanescente o único citado
sobrinho, o qual não se conformava em repartir com este último legatário a
quem acusava de oportunista. A questão complicou-se com o aparecimento de uma
nota de dívida, no montante de dois mil e oitocentos contos, a favor de
Fernando. Com
este rever de situação, chegaremos, entretanto, junto da conservada vivenda,
onde fui introduzido pelo impaciente Gabriel. Na sala fidalga, onde uma
soberba cabeça de touro embalsamada tomava lugar de destaque por cima duma
vasta lareira, confortado com uns aperitivos caseiros pronunciadores de um
jantar avantajado, o jovem herdeiro ia-me dizendo: –
Dr., faça o que puder, não acredito que meu tio, que
Deus tenha em Santa Guarda, não pagasse a dívida àquele malandro, se é que
ela existiu. O que ele quer é arruinar-me, forçar-me a vender, pois dinheiro
não há… o malandro… –
Malandro ou não «menino Gabriel», está aqui o documento que fala como gente!
– interrompeu
a voz divertida do administrador surgindo inesperadamente da porta mais próxima.
E
estendendo-me uma folha de papel azul: – Diga aqui ao «patrãozinho novo»,
quem me deve, paga-me, o resto é conversa! Olhei o homem de
alto a baixo e o documento que me era oferecido. Li-o, observando cada
palavra, cada letra. Nem lhe toquei. –
Já consultaram o notário que reconheceu a assinatura? – Observei. –
Faleceu há cerca de três semanas – elucidou o administrador. –
Num desastre de automóvel muito oportuno, que levantou suspeitas de
preparado! –
Nada sei disso, mas o documento… –
Documento falso – conclui eu. Falsíssimo… potencial e transparentemente
falso! Nem sequer preciso consultar um perito. Um
berro de alegria e outro de desespero foi a resposta. Tive
que apartar os dois homens engalfinhados. Depois… Bem,
depois… depois daquela investigação em azul – que ocupa no meu arquivo o
Proc. 200/75/F. A. D. – foi um despedimento com
justa causa e alguns assobios seguido de farto e alegre jantar (ou ceia?) a
que nem sequer faltaram fados, harmónica e fandango! Que nos perdoe, lá do
céu, onde estará certamente, o bom doutor, o termos quebrado tão recente
luto! E
o documento? De o documento, junto uma reprodução fotográfica, para ter
ocasião de vos desafiar a responder: 1
– Quais os elementos que me levaram a
classificar de «falso» o documento? Justifique. 2
– Do seu ponto de vista, disserte,
justificando, as considerações que o caso lhe proporciona. |
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© DANIEL FALCÃO |
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