Autor Data 31 de Dezembro de 2008 Secção Competição Problema nº 5 Publicação O Almeirinense |
ESTÁ TUDO LÁ Daniel Falcão Quando julgamos que
nada mais nos pode surpreender, eis que aparece mais um desafio estimulante.
Como sei que este é um dos teus passatempos favoritos, sem esquecer a Banda
Desenhada, não resisto em pôr à prova as tuas celulazinhas cinzentas. Esta
manhã, pouco depois das nove horas, fomos chamados a uma moradia por um
advogado da nossa praça, suspeitando ele que algo errado tinha acontecido a
um dos seus clientes. Assim que lá chegámos, além de nos indicar a razão da
sua suspeita, explicou os seus movimentos, quando inquirido, desde que chegou
à moradia. Chegou
por volta das nove horas, hora previamente combinada, para preparar a reunião
que iriam ter no final da manhã com uns investidores. Poucos segundos depois
de tocar à campainha, a porta foi aberta pelo sobrinho do cliente. Trocaram
algumas palavras, enquanto se dirigiam para o escritório, localizado no andar
superior da moradia. A porta, como era habitual, estava fechada. O advogado,
sempre acompanhado, bateu; primeiro levemente, depois uma segunda vez e, por
fim, uma última vez com um pouco mais de força. Estranhando não haver
qualquer resposta, questionou o sobrinho do cliente se já tinha estado com o
tio durante a manhã. Recebeu como resposta uma negativa. Foi
então que decidiram ligar para o telemóvel. Quando a ligação foi
estabelecida, escutaram o som de uma campainha dentro do escritório. No final
do quarto toque, o advogado interrompeu a ligação e, simultaneamente, o outro
telefone calou-se. Não havia qualquer dúvida – o telefone e, provavelmente, o
seu portador habitual estavam do outro lado da porta. O
sobrinho teve a brilhante ideia de espreitar pelo buraco da fechadura e assim
se apercebeu de que o tio estava recostado na cadeira da secretária numa
posição estranha. Algo de grave teria sucedido. A decisão fora unânime: ligar
para as autoridades. Chegados
ao local, confirmámos a observação que fora anteriormente feita e, depois de
um pequeno empurrão, não necessariamente muito forte, pois aquela porta tinha
uma chave única e essa estava sempre na posse da vítima, lá entrámos no
escritório. Rapidamente
nos apercebemos de que, não fosse o corpo estar sentado à secretária numa
posição muito estranha, a visão de sangue já coagulado espalhado pelo corpo e
lugares mais próximos e uma arma próxima da mão, tudo estaria no seu devido
lugar. Uma observação pouco minuciosa levar-nos-ia a pensar tratar-se de um
suicídio. O género de ferimento que apresentava no temporal direito era claro
quanto à distância a que o disparo fora efectuado:
poucos centímetros. A arma, de onde saíra a bala fatal estava caída no chão,
do lado direito e próxima da vítima. A
porta, que estava fechada à chave, era o único acesso ao escritório, já que
as janelas existentes ficavam demasiado altas. Estas, como tive oportunidade
de confirmar, estavam bem fechadas. Havias de ver a maravilhosa vista de que
se pode usufruir por aquelas janelas: um jardim muito bem cuidado, com um
imenso lago de águas cristalinas a uma escassa dezena de metros da casa e uma
montanha verdejante ao fundo. Depois
de o médico legista ter estabelecido o período no qual teria ocorrido o
óbito, algures entre as 22 e as 23 horas do dia anterior, avancei para a
recolha dos depoimentos das duas personagens já referidas. O
advogado estivera em casa, desde que chegara às 20h30, na companhia da
esposa. Reside a cerca de vinte quilómetros da moradia, demorando
aproximadamente uns vinte minutos a lá chegar. Saiu de casa, já passava das
22 horas, respondendo a uma inesperada solicitação da vítima. Recebera um
telefonema, pedindo-lhe que passasse na moradia para adiantar uns assuntos
relacionados com a reunião do dia seguinte. Já ia a caminho, quando recebeu
um SMS indicando que já não era necessária a sua presença e que falariam
depois. Já que se tinha preparado para sair, aproveitou e foi até um bar
tomar uma bebida. Regressou a casa pouco antes das 23 horas. Passei,
então, para o sobrinho da vítima. Na noite passada, como era a primeira
quarta-feira do mês, dia de reunião do seu grupo de amigos, saiu pouco depois
das 21 horas e dirigiu-se a casa do amigo que os devia acolher naquela noite.
O amigo vivia a pouca distância da moradia; diria mesmo, ali ao lado.
Contudo, surgiu um contratempo, a companheira desse tal amigo não estava com
disposição suficiente para os acolher naquela noite, pelo que tiveram de se
deslocar para a casa de outro amigo (como vivia sozinho, não teria o mesmo
problema), bem mais distante – a uns bons trinta quilómetros. Já
passava das 22 horas quando o sobrinho da vítima recebeu uma chamada
identificada como sendo proveniente do telemóvel do tio. Este pedia-lhe que
se encontrasse com ele, em determinado lugar, para tratar de assunto do seu
interesse. Como o local apontado até era muito próximo daquele onde estava,
acedeu imediatamente. Dizendo aos amigos que ia tratar de um assunto rápido,
saiu. Chegou ao local do encontro, estacionou o automóvel e por lá ficou uns
quinze minutos. Como ninguém aparecia, foi até um bar que ficava próximo, de
onde podia observar o local. Por fim, aborrecido, decidiu voltar para junto
dos amigos. Tinha acabado de colocar as chaves na ignição, quando foi
surpreendido por dois indivíduos que o puxaram para fora do automóvel e,
apontando-lhe uma faca assustadora, o assaltaram, levando-lhe o casaco de
couro, com a carteira, o telemóvel e o que mais lá havia. Por sorte, como
tinha a chave na ignição, pôs-se imediatamente dali para
fora. Quando chegou junto dos amigos, contou-lhes o que acontecera.
Estes decidiram ir imediatamente atrás dos meliantes. Contudo, o assaltado
demoveu-os e resolveu voltar para a moradia onde vivia com o tio. Após entrar
em casa, ainda foi bater à porta do escritório, mas, como ninguém respondeu,
decidiu falar com o tio no dia seguinte. Enquanto
recolhia os depoimentos, os meus homens trataram de passar a moradia a pente
fino: escritório, quartos, tudo. E ainda bem que o fizeram, porque foram
encontrar, no fundo da gaveta da roupa interior do sobrinho da vítima, a
chave da porta do escritório e umas luvas. Encontraram ainda, no guarda-fatos
dentro de uma caixa de sapatos, alguns volumes de notas, totalizando 50 mil
euros. Tive
oportunidade de consultar o PDA da vítima (não tinha mais nenhum telemóvel e
na moradia não havia telefone fixo) e verificar que as comunicações mais
recentes foram: recepção de uma chamada não
atendida às 9:06:49; no dia anterior, enviara um SMS às 22:20:27 – “Mudança
de plano. Falamos amanhã.”; e, antes, fizera um telefonema, às 22:14:02.
Sendo a origem e o destino destas comunicações o telemóvel do advogado, pude
confirmar as comunicações recíprocas. Acresce
que não foram encontradas quaisquer impressões digitais na chave e apenas as
da vítima na arma do crime. Quanto ao dinheiro, confirmei que tinha sido
levantado pela vítima, numa agência bancária, no dia anterior. Os
amigos do sobrinho da vítima confirmaram os movimentos por ele descritos,
assim como o atendimento do telefonema por volta das dez e um quarto, embora
ninguém tenha ouvido qualquer toque de telemóvel, e a sua chegada antes das
onze horas. Os empregados dos bares confirmaram a passagem dos dois homens
pelos respectivos bares, mas não conseguiram
precisar a hora, para além de “entre as dez e as onze”. Na moradia, habitavam
apenas o tio e o sobrinho, embora, entre as 8 e as 20 horas, contassem com os
préstimos de um casal que tratava do seu interior e exterior. É sabido que os
negócios da vítima estavam em queda nos últimos meses e que a relação entre
tio e sobrinho não era a melhor, devido aos gastos excessivos do herdeiro
único, actualmente desempregado. –
Não precisas de acrescentar mais nada! – exclamou Jartur Mamede, depois de escutar atentamente e sorrindo
na direcção de Marcos Dias. –
Ah, é? Expõe lá, então, tintim por tintim, o teu raciocínio… |
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© DANIEL FALCÃO |
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