Autor Data 9 de Dezembro de 2007 Secção Policiário [856] Competição Campeonato Nacional e Taça de
Portugal – 2007/2008 Prova nº 1 Publicação Público |
REVELAÇÕES PERTURBANTES Detective Lupa de Pedra Aníbal
Silva Gatuno tinha sede de saber, mas de um saber específico, pois desde
sempre o acompanhara uma obsessão em querer saber as origens da sua família e
do seu curioso nome. Já
em criança se deleitava a ouvir as histórias que os seus avós lhe contavam
sobre a sua vida quando jovens. Nunca se cansava de uma e outra vez as ouvir,
e imaginava um passado cheio de tribulações e sacrifícios, mas também de
muitas alegrias e motivos de comemoração. Tudo o que ouvia era tão diferente
da realidade que conhecia, que sentia como se estivessem a falar de outro
planeta! Era
de tal modo apaixonado por estas narrativas que muitas vezes o acusavam de
ser aluado e distraído e de passar mais tempo a olhar para “o que já lá vai”
em vez de estar atento às suas obrigações diárias, acusações, aliás, que o
continuaram a acompanhar pela vida fora. Esta
paixão não mais o abandonou e, em adulto, depois de começar a trabalhar e
conseguir alguma disponibilidade financeira, deu finalmente início a
pesquisas mais aprofundadas. Não
o fazia por sonhar descobrir antepassados fidalgos, pois as suas origens
humildes e até o seu apelido em tudo o pareciam desmentir, mas sim porque lhe
custava admitir que tudo passava como o pó ao vento, que nada restava de
ninguém, nem sequer uma simples lembrança. Com
estes pensamentos Aníbal caminhava regularmente há alguns anos, em direcção às conservatórias do registo comercial para
obter registos de nascimento, casamento e óbito dos seus familiares,
tornando-se inclusive um assíduo frequentador dos Arquivos Distritais e da
Torre do Tombo. O tempo e o empenho deram-lhe a familiaridade com todo o tipo
de documentos, das certidões aos passaportes, dos assentos paroquiais aos
testamentos. Tudo
começara por volta de 1995 numa Loja do Cidadão, onde requisitou a sua própria
certidão de nascimento. Esse simples documento tornou-se uma verdadeira
“porta para o passado”. Daí passou para os seus pais, avós e por aí fora numa sucessão quase imparável, tendo
conseguido estabelecer com um detalhe razoável, a história das quase dez
gerações da sua família que viveram ao longo dos últimos três séculos. O
seu casamento em 2002 com Joana e o nascimento da filha Sofia em 2005 em nada
alterou os seus hábitos. Pelo contrário, Aníbal redobrou mesmo os seus
esforços, pois passou a investigar também a genealogia da sua esposa, de
forma a ter uma genealogia completa que um dia pudesse deixar ao seu rebento. A
pesquisa foi sendo efectuada sem grandes revelações
ou surpresas até um dia numa conservatória do registo civil, enquanto
consultava mais um imponente livro de Assentos. Quase
caiu da cadeira quando se deparou com o assento de óbito de Joaquim o
“Gatuno”, nome pelo qual foi conhecido Joaquim da Silva, um dos seus
trisavôs, pelo lado paterno. Estava descoberta a origem do seu apelido.
Estava também descoberta a ovelha negra da família, confirmando-se que o seu
apelido tivera uma origem infame. Nos
dias que se seguiram as revelações sucederam-se num turbilhão, pois esta
descoberta estava a revelar-se um verdadeiro filão para um apaixonado da
genealogia. Conseguiu
apurar que este familiar vivera entre os anos de 1825 e 1860. A sua vida não
tinha sido longa, pois a carreira que tinha adoptado,
a de ladrão, não era das mais promissoras em termos de expectativa de vida.
No seu reduzido tempo de vida Joaquim viu-se muitas vezes a contas com a
Justiça, tendo-se livrado por pouco da forca. Foi cliente regular de diversos
estabelecimentos prisionais um pouco por todo o País, tendo-se tornado
meliante especialmente temido pelo submundo do crime na cadeia penitenciária
de Lisboa ao cimo do parque Eduardo Sétimo, local onde mais tempo esteve
detido. Joaquim
sabia bem que o seu destino estava traçado. O dia fatídico chegou quando, em
pleno assalto a uma agência bancária, foi surpreendido e abatido a tiros de
mosquete pela Guarda Nacional Republicana. Este
dramático acontecimento durante algum tempo encheu as parangonas da imprensa
periódica da época, tento tido grande destaque no jornal “O Século”,
principalmente pela trágica morte de alguns civis que se encontravam no
banco. Para além de Joaquim, e de dois guardas, também tombaram por terra
mais um jovem casal e as suas duas únicas filhas de 5 e 3 anos. Aníbal
sofria sempre que descobria aspectos menos
dignificantes dos seus antepassados, mas este deixara-o especialmente
desgastado. Incomodava-o ser descendente de um tal bandido mas, por outro
lado, pensava que sem o filho que Joaquim Gatuno deixara a uma humilde
lavadeira, ele Aníbal, não existiria. Teria de aceitar que também devia um
pouco da sua existência a um homem que marcou a sua geração através de crimes
hediondos. Será que havia alguém que se pudesse gabar do contrário? Só
que o mais surpreendente ainda estava para surgir. Uns
dias mais tarde, ao cruzar registos e verificar uma e outra vez alguns
documentos, Aníbal concluiu algo de surpreendente que nem queria acreditar.
Levantou-se e depois de tirar mais alguns apontamentos devolveu os livros. Habitualmente
não partilhava com Joana as suas descobertas genealógicas, mas desta vez
sentia-se na obrigação de o fazer. Aníbal encarava estes assuntos com muita
seriedade e sentia-se responsável por dar explicações que ninguém lhe exigia. No
caminho para casa, Aníbal sentia-se de tal modo perturbado que falava sozinho
enquanto caminhava pelo passeio. Ao
chegar a casa foi directo ao assunto. “Sabes
Joana, hoje fiz uma descoberta que nos diz respeito. Lembras-te de há alguns
dias eu te ter falado do meu trisavô Joaquim Gatuno e da forma como ele
morreu? Pois fica a saber que aquele casal e suas filhas que ele matou nesse
dia no banco antes de ser morto são teus antepassados! Não
pode haver qualquer dúvida. Já verifiquei os nomes e tudo bate certo! Quem
diria que um meu antepassado matou os teus antepassados! Sabes
que mais? Isto é muito triste e vai ser difícil de explicar à nossa filha! Acho
que perdi o gosto por estas pesquisas. Percebi hoje que há segredos que devem
morrer com as pessoas.” “Não
fiques assim Aníbal” – disse Joana. “Não tens que te martirizar tanto com
coisas que aconteceram há tanto tempo e das quais não tens qualquer responsabilidade.
Olha, sabes uma coisa, eu acho que nem deves pensar tanto no passado. Olha
mais para o presente. Parece-me que a menina está a chorar. Podes ir dar-lhe
o biberão?” Pergunta-se:
Será que se justificava tanto sofrimento em Aníbal? E
será que podem ser encontradas outras inverdades neste relato? |
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© DANIEL FALCÃO |
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