Autor

Detetive Jeremias

 

Data

16 de Junho de 2017

 

Secção

O Desafio dos Enigmas [25]

 

Competição

Torneio Policiário 2017

Prova nº 5

 

Publicação

Audiência GP Grande Porto

 

 

NÃO HÁ NADA PARA NINGUÉM

Detetive Jeremias

 

A literatura policial está recheada de tios ricos, demasiado agarrados à bolsa, que acabam depois assassinados por um ou mais sobrinhos impacientes. Pelo seu lado, estes herdeiros acabam com os ossos na cadeia fruto de uma intervenção espetacular do herói da saga – um investigador das forças da ordem, um detetive amador, um jovem arguto, uma solteirona bisbilhoteira, ou qualquer outra personagem de ficção que a imaginação do autor consiga arquitetar.

Este relato da vida real envolve uma tia milionária e os seus três sobrinhos endividados até ao tutano, todos desesperados por uma fatia da herança que tarda em chegar. Sem o desenlace fatal não há nada para ninguém.

A tia Judite, uma octogenária moderna cheia de energia mental, é detentora de uma fortuna iniciada há séculos com esquemas obscuros e reforçada por gerações com boa visão para o negócio e gosto excessivo pela poupança. Judite tem dificuldades de mobilidade e prefere de longe manter-se na tranquilidade do local onde vive, um palacete no coração da capital nortenha. Talvez por isso mesmo aprendeu a navegar na Internet, o que lhe permite não só viajar pelo mundo fora, mas também ter acesso às notícias do país e do mundo nos múltiplos jornais online. Judite é uma pessoa culta e informada, é perspicaz e interessada por tudo. Apaixonada por livros policiais, lê-os atualmente no tablet, na versão e-book − um descanso para a vista e para a carteira também.

Os sobrinhos, únicos herdeiros legítimos, cumprem o padrão: são uns inúteis ociosos com vocação para vícios e atividades pouco legítimas. A tia Judite não tem ilusões e sabe bem que a simpatia e desvelo manifestados pelos seus sobrinhos não passam de uma falsidade para tentar mascarar o interesse nos bens e nas contas bancárias de que é titular. E as quase certezas de Judite vão mais longe. Ela tem fortes suspeitas de que um deles, e apenas um, já esgotou a paciência e está determinado em não esperar por uma morte natural. É claro que ainda não conseguiu qualquer prova destas maléficas intenções. Digamos que tudo não passa de um pressentimento fundamentado numa série de acidentes estranhos dos últimos meses, todos felizmente sem consequências: o insólito curto-circuito no candeeiro de leitura, a queda na banheira devido a um rasgão demasiado retilíneo no tapete de ventosas, o frasco novo de gotas oftálmicas com o selo de segurança quebrado e uma coloração diferente da habitual.

Em 15 de Agosto de 2016 Judite festejou o seu 85º aniversário. Os sobrinhos chegaram logo depois do almoço. Mostraram-se mesureiros, exibindo cada um o respetivo presente.

Clara transportava um periclitante arranjo floral. A amálgama de caniços retorcidos com flores frescas, estava apertada desajeitadamente com um imenso laço verde alface. Judite tentou ser assertiva e inspirou suavemente o invulgar aroma a amêndoa que se desprendia da oferta, enquanto tentava não ouvir o patoá irritante da sobrinha. “Ó qu’rida tia, fui eu própria qu’ armei este piqueno presente. Sei lá… ´Tá lindo de morrer, não ‘tá?”

Rodrigo entregou à tia o que acreditava ser o sucesso garantido para adoçar as gulosas papilas gustativas da avarenta. Disse: “Não fui eu que fiz, mas comprei ontem com todo o carinho. Feliz aniversário, tia!”. Judite, ao observar através da transparência da caixa o “requintado sortido” com 24 bombons perfeitamente alinhados, sentiu de imediato crescer-lhe água na boca e sorriu ao ver a marca do “Ambrósio, apetecia-me tomar algo”.

Mas logo José Alberto atirou um “Chega p’ra lá!” ao primo Rodrigo e desvendou a sua oferenda, acondicionada numa pequena mala térmica: “Parabéns, minha tia! Fui mesmo agora buscar esta delícia à minha gelataria preferida no Porto. Vamos celebrar em conjunto. Vamos, vamos, depressa ou isto descongela.” A tia passou com delicadeza a língua pelos lábios finos, antecipando o prazer de um fresco sorvete, como se dizia no seu tempo.

Judite observou o conjunto dos presentes e de imediato uma certeza trespassou a sua mente. Despachou os sobrinhos para a rua, com um “Voltem depois do jantar! Descansem que o gelado vai para o congelador ”. De seguida telefonou a um velho amigo da Judiciária, partilhou as suas desconfianças e ele garantiu-lhe a recolha para análise toxicológica.

Os sobrinhos lá foram com a cabeça entre as orelhas. Um deles ia com o rabinho a dar-a-dar, julgando ter assegurado a muito, muito, curto prazo pelo menos um terço da herança da velha.

Os factos que aqui relato não encaixam com perfeição na trama descrita no início, nem eu tenho a pretensão de ser escritora, limito-me a contar as coisas tal como se passaram. Temos tia rica, sobrinhos desesperados, mas o crime não acontece e a investigação terá de ser conduzida pelo leitor. Sobre quem recairiam as suspeitas da tia Judite? Porquê?

 

SOLUÇÃO

© DANIEL FALCÃO