Autor

Detetive Jeremias

 

Data

20 de Abril de 2023

 

Secção

O Desafio dos Enigmas [161]

 

Competição

Torneio "Solução à Vista!" – 2022

Prova nº 9

 

Publicação

Audiência GP Grande Porto

 

 

O ROUBO DO CONDE BARÃO

Detetive Jeremias

 

Flora e Albino Silva andavam sempre às turras. Nunca diante dos fregueses, é claro, mas logo que se viam sozinhos, começavam as desavenças. Nada de grave, coisas de irmãos, que partilharam habitação e trabalho durante toda uma vida. Depois da morte dos pais, com o pé-de-meia alugaram uma pequena tabacaria na capital. Já lá iam vinte anos. Moravam por cima de um negócio que tinha mais baixos do que altos. Dava para pagar as despesas, nem sempre dentro do prazo. Também, no início dos anos 60 do século passado, ninguém esperaria fazer grande fortuna com a venda de tabaco, livros de bolso, cautelas, jornais, revistas, num vão de escada daquele prédio estreitinho na zona do Conde Barão.

Era o dia 9, uma madrugada de fevereiro particularmente cinzenta. E à tristeza do dia juntava-se a quebra de vendas. No início do ano a atualização das rendas e o fecho de dois grandes escritórios, afastara bons clientes. Os irmãos andavam preocupados, com o presente e com o futuro. Nesse dia, como costume, Albino abrira a porta exterior do edifício bem cedo para a entrega dos matutinos. Flora acabara de distribuir os trocos pelos compartimentos da caixa de madeira, quando a menina Emilinha abriu de rompante a porta envidraçada de acesso ao patim do rés-do-chão, onde funcionava a tabacaria, e gritou com voz esganiçada:

– Arrabentaram ca caixa das rendas!

Flora Silva, a quem não escapava a leitura da edição mensal dos policiais da Vampiro, apurou os sentidos, enquanto o elétrico lá fora lançava um chiado agudo, desafiando os decibéis de Emilinha.

Seguira-se a maior confusão. Para Feliciano, morador do prédio, senhorio e proprietário – fruto de uma herança de uma tia-avó – sem atividade conhecida, todos eram culpados. De cima a baixo, desde a Emilinha, que exercia a função não oficial de porteira, até aos inquilinos da tabacaria. Nem as manas gémeas Godinho, escaparam à ira do “senhor engenheiro” Feliciano. As Godinho moravam no 2º andar, ex-artistas de revista do Teatro Gymnasio, que agora octogenárias viviam desafogadamente, embora com graves problemas de mobilidade.

– Só pode ter sido alguém aqui da casa. Cambada de ladrões! Oportunistas! Ontem, quando entrei, estava tudo em ordem e a caixa ainda tinha o cadeado. Foi você, sua inútil?

– Oh sinhor inginheiro… eu caia já ‘qui ceguinha… – lamuriava-se a Emilinha.

– Ou então foram vocês… – gritava acusador, ameaçando Flora e Albino com o punho fechado – vocês são os maiores caloteiros. Este mês ainda nem conseguiram pagar! Só quem mora neste prédio é que tem chave para aqui entrar.

Emilinha, ter-se-ia encolhido mais um pouco, se pudesse. Flora e Albino olhavam para o chão, mas sem se deixarem intimidar.

– Se o dinheiro não aparecer todo até ao fim do dia, podem ir de malas aviadas. Despejo-vos a todos por falta de pagamento! Corja de parasitas! Quem me rouba não fica sem resposta…

Rosnou, apertou o cinto do roupão felpudo, deu meia-volta e entrou no seu 3º andar, certamente de novo para o conforto dos lençóis. Emilinha seguiu-o, mesureira, com uma ladainha de pedidos de perdão e mil desculpas, até levar com a porta na cara. Afinal, pesava-lhe sobre os ombros uma tripla responsabilidade. Era ela quem tinha uma chave do cadeado da caixa de madeira afixada junto à porta do senhorio, era também dela a responsabilidade de levar o dinheiro das manas Godinho que, apesar de morarem no piso abaixo, já não conseguiam deslocar-se e ainda recolhia o dinheiro ou cheques para entregar ao senhorio. Emilinha, não escapava igualmente ao pagamento da renda das esconsas águas-furtadas do prédio. Mesmo trabalhando como escrava na limpeza dos espaços comuns e da casa do solteirão do sinhor inginheiro. A custo zero para este, pois então!

A caixa das rendas existia desde sempre. Até dia 8 de cada mês era obrigatório, sempre que possível, que cada inquilino depositasse o respetivo pagamento na velha caixa de correio adaptada a esta função e à troca de correspondência interna, quando necessário. Agora, alguém soltara as frágeis peças metálicas que fixavam o cadeado e roubara o dinheiro.

Flora voltou para trás do balcão. A chuva miudinha afastava os clientes e ela tinha tempo para matutar no assunto. Ninguém estava com vontade de meter a polícia ao barulho, por motivos óbvios. Só um morador do prédio é que podia ter roubado o dinheiro das rendas, porque a porta e a fechadura da entrada do edifício eram bem fortes e o irmão teria visto sinais de arrombamento. A presença do irmão, e dela própria, na tabacaria também tornava impossível a entrada furtiva de qualquer de um ladrão. Aparentemente, a caixa estava intacta, quando o senhor Feliciano voltara da mesa de apostas do casino, deviam ser umas quatro da manhã, como fazia todos os dias. Ela bem o ouviu o estrondo da porta de entrada, já que as preocupações lhe roubavam o sono. A Emilinha quando descera de manhã bem cedo é que dera com a caixa escancarada e correra para a tabacaria. Assim, não devia ser difícil descobrir o culpado, até porque em cada piso só havia uma habitação. Flora sentia-se um pouco envergonhada por não ter conseguido ainda deixar o cheque das rendas de fevereiro. Era ela que tratava da contabilidade, mas, embora com dificuldades, não tivera coragem para dispensar o ardina que ajudava a vender os jornais da tarde. Flora teve uma ideia, pegou no canivete das encomendas, afiou devagarinho o gasto lápis Viarco, e num pedaço de papel pardo começou a alinhar os suspeitos. Depois de uns minutos, parou, franziu o sobrolho num esforço de concentração e acrescentou “Albino” à lista. Não que desconfiasse do irmão, mas os Vampiros ensinaram-lhe que não se devem excluir suspeitos.

Afinal, quem seria o ladrão? 

 

SOLUÇÃO

© DANIEL FALCÃO