Autor Data 26 de Junho de 1994 Secção Policiário [156] Competição Prova nº 6 Publicação Público |
O DESTINO MARCA A HORA Dic Roland Coroando a colina da velha
Alta coimbrã, a torre da Universidade sobressai, iluminada e sempre esbelta,
contra o fundo cinzento da noite. Noite festiva de Maio, invulgarmente
animada apesar da hora tardia; era o rescaldo inevitável daquele dia grande,
em boa parte preenchido com o tradicional cortejo da Queima das Fitas, ao
longo de um percurso caracterizado pela juvenil irreverência e pela
contagiante alegria da ‘malta’ estudantil. Àquela hora, porém, já quase
toda a gente recolhera a penates. Só os mais boémios teimavam em deambular
pelas ruas desertas, cantando ou tocando guitarra e denunciando também, valha
a verdade, uma lamentável desafinação. “Coimbra tem mais encanto,
na hora da despedida”, cantarolava o Mário, agora um feliz quintanista de
Direito, com a voz arrastada e pastosa, bem diferente daquela que o tornara
famoso (e muito disputado) entre as jovens casadoiras da cidade. “Coimbra tem mais encanto…”,
repetiam em coro os restantes elementos do grupo; e agitavam no ar as capas
negras, num simbólico adeus aos tempos de estudante, à velha Universidade e à
sempre “menina e moça” Lusa Atenas. Regressavam todos à sua
república, nas imediações da Sé Velha, depois de uma visita de cortesia a
certas “capelinhas” de além-rio, de que eram habituais frequentadores. Bem
longe estavam eles de pensar que viriam a ser, uns minutos mais tarde,
involuntárias testemunhas da tragédia que ocorreria ali mesmo, em Santa Clara,
à entrada da ponte sobre o Mondego. É certo que a última
paragem, num bar das proximidades, não fora das mais felizes. Mário, tão
divertido e folião como impulsivo e corajoso, quase chegou a vias de facto
com três indivíduos que ostensivamente o achincalhavam, na clara intenção de
provocar um confronto. Dois deles, aliás, eram seus conhecidos e “cordiais”
inimigos, um e outro por motivos bem diferentes. Alberto, que só usava a
capa e batina para fingir que estudava (ainda não concluíra, com cinco anos
da faculdade, o 2º de Medicina), morria de amores por uma colega que, no
entanto, o preterira pelo Mário. Belchior, ex-sargento do Exército e famoso
atirador desportivo, ainda não esquecera o facto de ter sido punido com
prisão disciplinar agravada na sequência de um processo do foro militar, em
que o Mário figurou como principal testemunha de acusação. Um e outro – sabia-se
– não calavam o desejo de, mais dia menos dia,
ajustar contas com o futuro jurista. O terceiro, Clemente de
nome e amigo inseparável dos outros dois, era bem conhecido pela sua habitual
agressividade e pelo carácter misterioso do seu modo de viver, ostensivamente
sumptuário. Fora ele quem, no bar, se dirigira a Mário e lhe pegara pela batina,
ordenando-lhe que se calasse, pois estava farto de ouvir fados. Ordem a que o
interpelado respondeu com um valente murro, ao mesmo tempo que os colegas
acorriam e o separavam de Clemente. O proprietário da casa,
temendo o pior, decidiu fechar as portas e pediu a todos que saíssem. Com modos
apaziguadores e em jeito de justificação apontava para o relógio de parede
que, nessa altura, marcava 03h40. Contas feitas e despesas liquidadas, todos concordaram
em sair. O grupo dos “repúblicos”
tomou o rumo da ponte, junto da qual fizeram uma paragem, quem sabe se para
fruir, uma vez mais, a mágica beleza da cidade adormecida. Menos contemplativo, Mário
adiantou-se aos colegas uma vintena de metros e, já sobre o rio, as costas
apoiadas no parapeito de montante, recomeçou a canção interrompida: “Não me
tentes enganar / coma tua formosura; / que, para além do luar, / há sempre
uma noite escura”. E o coro, agora mais afinado, respondeu: “Coimbra tem mais
encanto, / na hora da…” De súbito, um estampido
seco, brutal, fez calar todas as vozes. Logo a seguir, estupefactos e
paralisados, os companheiros de Mário viram-no levar a mão direita ao peito,
estender o braço esquerdo em busca de qualquer apoio e agachar-se lentamente
junto ao muro, quedando-se, por fim, enrolando sobre si mesmo, com a guitarra
a seus pés. Não foi difícil a Jorge,
finalista de Medicina, concluir que o seu amigo estava agonizante, vítima de
um tiro certeiro. Mas porquê? E por quem? Chamado o 115 da cabina
mais próxima, de nada valeu ao pobre Mário a rapidez dos socorros. E os seis
companheiros e amigos, embora esmagados pela dor, a custo procuraram
reconstituir a cena e recordar todos os pormenores. O inspector
Orlando, que tomou conta do caso, começou naturalmente por ouvir cada um
deles. E dado que, àquela hora, o movimento na ponte era quase nulo, todos se
recordavam de um carro descapotável que então ali passara, primeiro em marcha
lenta, depois a grande velocidade, até ao Largo da Portagem. E eram unânimes
em admitir que o autor do crime só poderia ter sido alguém que viajasse nesse
carro, cuja marca e matrícula, no entanto, não souberam referir. De resto, só
a brusca aceleração do carro, depois do tiro, os levou a reparar na sua
passagem. – Que horas eram,
recorda-se? – Perfeitamente, inspector – respondeu Jorge –, íamos a caminho da ponte
quando o relógio da torre bateu as quatro horas; até aproveitei para acertar
a minha “cebola”. Parámos depois, por uns momentos, antes de retomar a marcha
para casa, com excepção do Mário, que entrou na
ponte e foi parar mais adiante. Pouco depois, foi o tiro. Voltei a olhar para
o relógio quando tomei o pulso ao meu amigo: eram precisamente quatro e oito
minutos. As cenas do bar de Santa
Clara foram também descritas com todo o pormenor. O inspector
anotou os nomes de Alberto, Belchior e Clemente, que facilmente foram
identificados e chamadas a prestar declarações na segunda-feira imediata. Belchior foi o primeiro a
comparecer. Começou por se insurgir contra a convocatória, argumentando que
não tinha nada a ver com o assunto, de que só tomara conhecimento pelos
jornais de sábado. Declarou ainda que, para mal dos seus pecados, conhecia
muito bem Mário e não o suportava… – Mas, atenção – sublinhou –,
nunca me passaria pela cabeça acabar com ele, se é isso que estão a pensar! – Tem viatura própria? – Sim, tenho um MG de dois
lugares, tipo “sport”. – E a que horas atravessou
a ponte, na noite de quinta-feira? – Não atravessei a ponte –
respondeu, sorrindo, Belchior –, pela simples razão de morar em Santa Clara.
Depois de sair do bar, cerca das quatro horas, mais coisa menos coisa,
despedi-me do Alberto e do Clemente e fui a pé para casa. O segundo depoimento foi de
Alberto: confirmou a sua presença no bar, mas negou que tivesse travado
qualquer discussão com Mário. Não gostava dele, é certo, porque ele lhe
roubara a namorada, mas não atribuía a esse facto especial importância, até
porque foi a jovem a principal culpada. – Era o que faltava! – exclamou. – Arriscar a liberdade e o futuro com uma vingança
incompleta e por causa de uma garota! – Também acho – concordou o
inspector. – Seria um perfeito disparate. E para
onde foi, quando saiu do bar? – Ora essa! Fui directamente para casa, na Couraça de Lisboa. – A que horas, lembra-se? – Por acaso, lembro-me. Saí
do bar às quatro menos um quarto, despedi-me dos meus amigos e meti-me no
carro, um Renault 4 já velhinho. Ao passar na ponte, olhei para o relógio da
Universidade, por sinal muito bem iluminado, e notei que eram exactamente quatro menos dez. E digo exactamente,
porque me deu para reparar na perfeita linha recta
formada pelos dois ponteiros: o maior, o dos minutos, na direcção
do X das dez horas; e o outro com a extremidade colocada entre o I e o V das
quatro horas. Só por isso é que fixei a hora da minha passagem: quatro menos
dez! Clemente pouco mais
adiantou: estivera no bar, sim senhor, e só não dera cabo do estudante-cantor
porque os outros acudiram a tempo. E continuou: – Quanto ao acidente (ou
crime, segundo dizem…), nada posso esclarecer. Só sei que o murro que recebi
e a que não pude responder, com muita pena minha, não era razão bastante para
uma tal vingança. Não acha, inspector? O inspector
ignorou a pergunta e prosseguiu: – Para onde foi, depois de
sair do bar? – Bem… Sou mesmo obrigado a
responder? – Como queira, sr. Clemente, mas advirto-o de que as faltas de clareza
ou de verdade podem voltar-se contra o declarante… – Sim, bem sei. Continuo,
porém, a não poder responder completamente à sua pergunta. Direi apenas que
fui para Condeixa, onde passei o resto da noite. – No seu carro,
evidentemente… – Engana-se, inspector! Precisamente na quinta-feira passada ainda não
tinha o meu carro novo. Mas o que é preciso é ter amigos. E eu tenho um bom
amigo – por sinal, primo do Alberto, que acabou de ouvir em declarações –
proprietário de um “stand” de carros novos e usados,
a quem recorro sempre que estou apeado. Nessa noite, por exemplo,
desloquei-me num magnífico BMW com capota de lona. Nessa mesma noite, o inspector Orlando e o seu adjunto Flávio passeavam calmamente
no parque da cidade, trocando impressões sobre o processo que tinham entre mãos.
As festas académicas estavam no auge e o inspector,
com pouca disposição para manifestações ruidosas, desafiou o companheiro para
um passeio a Santa Clara. Sentaram-se num café,
beberam cerveja, conversaram e regressaram à cidade. Ao entrarem na ponte,
foi inevitável voltar ao assunto que os ocupara durante quase toda a noite. – Pobre rapaz! – comentou o Flávio. – Morrer assim, precisamente a poucos
dias do casamento que, segundo me disseram, estava marcado para sábado. O inspector
não respondeu, absorto na contemplação da paisagem citadina. Lá do alto, como
que a chamar os homens às realidades terrenas, começaram a cair lentamente as
badaladas da meia-noite… – É verdade – continuava o
adjunto –, ninguém sabe, ao certo, quando chega o seu fim. É o destino que
marca a hora… Continuando a caminhar e a
contemplar a belíssima torre, Orlando respondeu, por fim: – Sim. Pode ser isso… ou
vice-versa. O companheiro de passeio
não compreendeu, mas não se preocupou demasiado. Já se habituara às saídas
misteriosas do chefe. Ao chegarem à portagem, o inspector voltou afalar: – Meu amigo, já sei quem
matou o Mário! Amanhã falaremos. Boa noite! |
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© DANIEL FALCÃO |
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