Autor Data 3 de Outubro de 1999 Secção Policiário [429] Competição Prova nº 6 Publicação Público |
UMAS FÉRIAS PARA ESQUECER Dic Roland Ao embarcar no ‘Conte
Grande’ para Buenos Aires; o inspector Geraldo
estava longe de prever que uma viagem de férias se transformaria, a breve
trecho, numa atribulada e fatigante digressão. Era em Dezembro do já
longínquo 1950. A chuva e o vento que, naquela manhã, fustigavam Lisboa
impediram que os passageiros visitassem a cidade, mas apressaram, por outro
lado, as operações de embarque e o recomeço da viagem, rumo ao Funchal. É sabido que a fama não
conhece fronteiras; e os êxitos profissionais de Geraldo (alguns de projecção internacional) explicam o convite para investigar
um caso difícil ocorrido em Milão: o roubo de três quadros famosos adquiridos
pelo empresário Pietro Cavalcanti e destinados à sua
residência na capital argentina. Circunstâncias imprevistas
forçaram-no a prolongar, por algumas semanas, a sua estada na Europa; e foi
então que as obras de arte (um Degas e dois Monet)
desapareceram da garagem particular de Cavalcanti. Não nos alongaremos na
história da recuperação dos quadros e só diremos que se confirmou, em pleno,
a competência do investigador. O empresário, por sua vez,
felicíssimo com a rápida solução do problema, decidiu convidar o inspector, entretanto regressado, para umas férias em Mar
del Plata. Convite aceite, ele próprio
reservou a passagem no mesmo navio em que também viajaria, de retorno a casa.
Reserva que, de resto, estava ao seu alcance, por ser o director-geral
da delegação portuense da companhia armadora e, simultaneamente, um dos
administradores da empresa. A esta opção pela América
do Sul não foi estranho o facto de se ter casado, em segundas núpcias, com
Maria Teresa, uma rica e bela italo-argentina,
descendente de aristocráticas famílias romanas; casamento que suscitou alguma
surpresa, dada a considerável diferença de idades entre os dois cônjuges:
Cavalcanti já festejara os 65 anos e Maria Teresa ainda não fizera 35… O enlace ocorrera há cerca
de seis anos, mas em evidente que o actual
relacionamento do casal se pontuava por uma certa frieza. Geraldo
apercebeu-se dessa frieza logo nos primeiros dias da viagem, tanto mais que
os Cavalcanti, embarcados em Génova, fizeram questão de, a partir de Lisboa,
o elegerem para companheiro preferencial. Verdade seja dita, certas atitudes
de Teresa e, pior ainda, vagas insinuações proferidas, a medo, por alguns
tripulantes, despertaram no espírito atento do inspector
uma desagradável suspeita; contudo, fiel a princípios de rigor que sempre
cultivara, a sua discrição manteve-se inalterável, recusando deixar-se
influenciar por meras aparências ou jocosas alusões. Até que um dia, na véspera
da chegada ao Rio de Janeiro… Eram duas horas da
madrugada. Ao recolher ao camarote, após uma animada sessão de bridge, Geraldo ouviu abrir-se a porta do camarote contíguo,
ocupado pelo casal Cavalcanti. Intrigado, e também curioso, rodou lentamente
o trinco e, pela fresta entreaberta, viu a esposa do empresário caminhar,
apressada, pelo corredor deserto. Ao chegar ao átrio central,
a poucos metros dali, subiu as escadas para o ‘deck’
superior, reservado à tripulação. – ‘ó
diabo…’ – murmurou o inspector – ‘Será que a
má-língua da caserna tem, afinal, algum fundamento?…’ Essa má-língua era, de
facto, pouco lisonjeira para a jovem esposa de Cavalcanti e envolvia também
um dos médicos de bordo. Embora habituado às mais
insólitas situações, Geraldo pouco dormiu, sempre a pensar na excursão nocturna da vizinha do lado. Aconteceu, até, que a ouviu
regressar à ‘suite’, apesar dos seus esforças para abafar o ruído da
fechadura. Olhou para o relógio; eram 5 horas. Mas o pior estava para
acontecer… Às dez da manhã, junto à
piscina, o inspector é surpreendido pela frenética
aparição de Teresa, cujas feições denunciam uma clara perturbação. – ‘Por favor, venha comigo’
– cicia-lhe ao ouvido – ‘Meu marido, o Pietro, está
muito mal, se é que não está morto…’ Num salto, Geraldo põe-se
de pé, veste o roupão e acompanha Teresa até à ‘suite’. A pior das duas
hipóteses admitidas pela esposa de Cavalcanti era, infelizmente, a verdadeira:
o marido estava morto, embora parecesse que dormia mal sono profundo. – ‘Já avisou o médico,
minha senhora?’ – perguntou o inspector. – ‘Ainda não’ – respondeu,
algo embaraçada – ‘Só pensei em pedir-lhe ajuda. Esperava encontrar o médico
perto da piscina, mas não o vi…’ – ‘Comecemos por aí’ – e,
enquanto fazia a chamada, prosseguiu – ‘Diga-me o que se passou aqui,
concretamente.’ – ‘Mas que posso eu
dizer-lhe?… Há poucos minutos, quando saía do banho, estranhei que Pietro ainda estivesse a dormir. Chamei-o, não respondeu.
Fui junto dele, abanei-o, e percebi então que alguma coisa de anormal se
passava. Fiquei aterrada, e corri a chamá-lo…’ – ‘Disse que estranhou o
sono prolongado…’ – ‘Sim. Ele toma todas as
noites um sedativo, porque tem dificuldade em adormecer. Sou eu, geralmente,
que preparo a solução e ele só a bebe quando, já na cama, se dispõe a dormir.
Mas às oito, nove horas, já está pronto para o pequeno-almoço, que nunca toma
no camarote.’ – ‘E durante a noite não o
ouviu queixar-se, chamar…’ – ‘Não, não… De facto, não
me apercebi de nada.’ O médico-chefe chegou
naquele instante. Limitou-se a verificar o óbito; mas, por não ter conseguido
apurar a causa imediata, considerou indispensável a autópsia, a requerer no
Rio de Janeiro. Maria Teresa pressentiu,
nas palavras do doutor, a suspeita de crime, e reagiu de imediato: – ‘Assassinato? Mas porquê?
e por quem?’ – ‘E como?…’ – acrescentou, quase em surdina, o inspector,
enquanto olhava para ela e, logo a seguir, para o copo vazio, sobre a mesa de
cabeceira. Graças ao convívio diário
com o casal, Geraldo sabia que Teresa tinha um curso superior de enfermagem,
que frequentara com brilhantismo, quando ainda solteira, no Instituto Rockefeller, em Nova Iorque. Não se dispensava, por isso,
de colaborar com o pessoal médico e paramédico, sempre que viajava nos navios
da empresa. Não admira, pois, que o inspector tenha
sido levado a admitir uma possível intimidade entre a senhora Cavalcanti e o dr. Flávio, segundo médico de bordo, que as más-línguas
apontavam como apaixonado por Teresa. No dia seguinte, já no
porto do Rio de Janeiro, procedeu-se ao desembarque do corpo. O inspector, por sua vez, levou o copo e os comprimidos ao
laboratório da polícia. Ao fim da tarde, recebeu o resultado das análises, e
a surpresa não podia ser maior: na solução que restava no fundo do copo havia
claros vestígios do sedativo… e de um veneno altamente letal; e quanto a
impressões digitais, somente as de Maria Teresa e do marido. Único detentor destas
preciosas informações, Geraldo averiguou, sem dificuldade, que o veneno
existia a bordo, num armário do gabinete do dr.
Flávio, por se tratar de um fármaco cuja prescrição, em doses mínimas, exigia
um rigoroso controlo. De tudo isto deu
conhecimento imediato ao comandante do navio, após o que assumiu,
oficialmente, a responsabilidade das investigações. E começou, naturalmente,
por indagar se haveria, a bordo, alguém que tivesse qualquer contencioso com
o administrador, quer entre os passageiros, quer entre a tripulação. Quanto aos passageiros,
havia três ou quatro que mantinham relações francamente amistosas com Pietro Cavalcanti; deles se ignorava, em absoluto,
qualquer motivo que pudesse estar na origem deste crime. Já dos tripulantes
não era possível dizer-se o mesmo, visto que havia dois cujo futuro estava seriamente
ameaçado. Um deles era o camaroteiro
Afonso, que, logo no início desta viagem, fora muito incorrecto
com alguns passageiros, o que determinou o seu imediato afastamento da 1ª classe;
o outro era Casanova, 2º oficial de máquinas, jovem atiradiço que ousara abordar
Maria Teresa com inusitado atrevimento e desastroso insucesso. Ao que parece, Cavalcanti
já tinha decidido que, ao chegar a Buenos Aires, proporia para a sede da companhia
o despedimento de ambos. Ainda nesse fim de tarde,
Geraldo voltou a ouvir a jovem viúva; desta vez, porém, foi mais contundente
e directo. – ‘Ontem, talvez por
esquecimento, não referiu que saíra do camarote durante a noite. Estarei enganado?…’ Apanhada de surpresa,
Teresa corou, gaguejou, e respondeu: – ‘É verdade, inspector. De todo me passou. Estava com uma forte dor de
cabeça e com vontade de fumar, saí para o ‘deck’ de
cima e lá fiquei uma ou duas horas…’ – ‘E não viu… não falou com
ninguém…’ – ‘Não, não vi… Isto é: só
vi o dr. Flávio, que me disse (agora me lembro…)
ter ido à enfermaria para um caso urgente.’ – ‘E quando voltou para o
camarote não viu se o marido…’ – ‘Para não o acordar, deitei-me
às escuras, sem fazer ruído.’ – ‘Bem pensado, e muito
prudente’ – comentou, em tom ligeiramente irónico, o inspector
– ‘Como também é prudente e muito saudável não fumar no camarote…’ – ‘Nunca o fiz. Não sou
grande fumadora, de resto. Comprei em Génova um pacote de Camel,
a minha marca preferida, e ainda tenho cigarros para toda a viagem. E ainda
bem que me abasteci em terra, porque o comissário não requisitou esta marca…’ – ‘Mas, voltando atrás:
falou há pouco na enfermaria e eu, peço desculpa, não sei se percebi bem: também
lá foi, ou?…’ – ‘Não. Não fui.’ Flávio desembarcara muito
cedo e só regressou para jantar. Prevenido, ao portaló, de que o inspector desejava falar-lhe, imediatamente o procurou,
cruzando-se com Teresa quando esta se preparava para sair. Geraldo, atento,
logo o convidou para entrar, evitando habilmente uma inoportuna conversa. Flávio ficou estupefacto ao
saber que o seu gabinete estava selado. Declarando-se incapaz de compreender
tal medida, perguntou: – ‘Que ligação tem o meu
consultório com a morte do homem?’ – ‘Já vai perceber. Mas
antes, peço-lhe que me responda.’ – ‘Ao seu dispor. Diga o
que pretende.’ – ‘Direi, e peço desculpa
se lhe parecer inconveniente…’ E, perante os olhos esbugalhados de Flávio, o inspector dispara: ‘Sei que esteve, ontem à noite, com a
senhora Cavalcanti. Sei ainda que esteve, ou estiveram, no bloco hospitalar.
Quer dizer alguma coisa acerca desse encontro e da visita à enfermaria?’ Flávio quase perdeu a fala.
Como soube o inspector da visita de Teresa?
Terrível dilema: se mentisse, negando o encontro, corria o risco de parecer
suspeito; se confirmasse, comprometia Teresa… Pensou, pensou… e acabou por
admitir que só a própria Teresa, talvez em pânico, poderia ter dito a
verdade, ou parte dela… Por fim, como quem se
conforma com o inevitável, desabafa: – ‘Pois bem, vou abrir-me
consigo. Mas peço-lhe que considere rigorosamente confidencial esta
declaração. Conheço a Teresa há muitos anos e nunca me conformei com este
casamento. Ela, garanto-lhe, também está arrependida…
e ainda gosta de mim. É preciso dizer mais? Poupe-me, por favor, a esse papel…’ – ‘E sobre a enfermaria?’ – ‘Não, Teresa não foi
comigo. Cerca das duas horas, pouco antes dela
chegar, recebi uma chamada da enfermeira de serviço. Nada justificaria a sua
presença, àquelas horas.’ – ‘Muito bem, dr. E agora, se não se importa, vamos passar pelo seu
gabinete.’ Removido o selo, entraram ambos
no consultório; e foi o médico, ainda inconformado com a situação, i primeiro
a manifestar surpresa ao ver a porta do armário escancarada. Foi então que Geraldo o pôs
ao corrente do motivo que o levara a selar aquele gabinete, e pediu-lhe que
retirasse o frasco do veneno identificado na análise. – ‘Mas como é possível’ –
perguntou Flávio, quase para si próprio, enquanto satisfazia o pedido do inspector. Dirigiu-se depois à secretária, abriu a gaveta
central e retirou de lá uma chave que estendeu, na palmada mão, com visível
perplexidade. – ‘Está aqui. Está aqui a
chave desse armário.’ Caiu, a seguir, em profunda
meditação, os olhos semicerrados e as mãos apoiadas no tampo da mesa. De súbito, num impulso que
não conseguiu dominar, estende a mão direita para um pequeno volume que ali
jazia, semiencoberto pelo telefone, e mete-o no bolso. – ‘Desculpe, doutor. Este
gabinete está selado. Nada poderá sair daqui sem a minha concordância…’ – ‘Tem razão, inspector. Não pensei nisso e, para falar francamente,
julguei que um maço de cigarros não tivesse importância…’ – ‘Cigarros que, aliás, nem
serão seus. Nunca o vi fumar, doutor.’ – atalhou
Geraldo, ao mesmo tempo que recebia, das mãos de Flávio, o maço em questão. Saíram ambos, pouco depois,
para a sala de jantar. Faltava conhecer apenas o
resultado da autópsia, que chegou às mãos do inspector
na manhã do dia imediato. E, se a surpresa provocada pelas análises já fora
grande, a deste relatório foi simplesmente arrasadora: contra todas as
expectativas não havia o mínimo vestígio de veneno nas vísceras dia vítima;
Cavalcanti fora morto… por asfixia!… Todas as hipóteses até aí
admitidas estavam, pois, prejudicadas por esta inesperada revelação. Porquê,
e para quê, o fármaco letal retirado do armário e depositado no copo? Porquê,
o assassinato do administrador por um processo mais violento e mais
arriscado? Geraldo fechou-se no seu
gabinete para, sozinho, fazer urna revisão de todos
os acontecimentos dos últimos dias. Sentado à secretária onde colocara, a
esmo, alguns dos objectos ligados à investigação (o
copo, os comprimidos, o maço de cigarros, o frasco do veneno), ia recordando
os diálogos, as reacções, as informações, a hesitação
ou a desenvoltura nas respostas, a postura e os gestos…. Para ocupar as mãos, que
lhe tremiam de impaciência e nervosismo, pegara no maço de cigana e fazia-o
rodar entre os dedos. Já reparara na marca,
evidentemente. Era Camel, a preferida por Maria Teresa.
Percebeu melhor, nessa altura, o interesse de Flávio em subtrair aquele maço
à investigação em curso. Um breve sorriso
iluminou-lhe o rosto, e o traço continuou a rodar-lhe entre os dedos. A certa altura, suspendeu o
movimento, quase maquinal, das suas mãos. Levantou-se da cadeira e correu ao comissariado.
– ‘Venho fazer um pedido:
pode saber-se quem foram os passageiros e tripulantes que foram a terra, em
Lisboa e no Funchal?’ – ‘É fácil, inspector. Em Lisboa, devido ao mau tempo, não saiu
ninguém. E no Funchal, com o mar muito agitado, só foram a terra cinco
tripulantes, dois em serviço (o 2º comissário Paulo e o camaroteiro Afonso) e
três de folga (os maquinistas José, Luís e Casanova).’ O ‘Conte Grande’ largou, ao
princípio da noite, para Santos e, dali paru Montevideu e Buenos Aires. Mais
três dias, os últimos de uma viagem que prometia férias de sonho e que se
transformou, afinal, num pesadelo… O navio estava prestes a encostar
ao cais. Fazendo uso da liberdade de movimentos de que gozava, o inspector entrou na ponte de comando, aproximou-se do
comandante, e disse: – ‘Antes de começar o desembarque,
peço-lhe que requisite polícia; temos que entregar-lhe o assassino e Pietro Cavalcanti.’ |
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© DANIEL FALCÃO |
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