Autor Data Janeiro de 2005 Competição I
Torneio Policiário “O Lidador… das Cinzentas” Prova nº 3 Publicação (em Secção) |
CRIME SEM CASTIGO… HÁ 2000 ANOS! Dic Roland Na
minha já longa série de investigações ainda não figura nenhuma tão curiosa
como esta, que decidi aceitar sem pensar duas vezes. Dela vos darei conta,
não tanto pela sua complexidade mas sim, e sobretudo, pelo surpreendente
exotismo que a caracterizou. Acreditem ou não, tudo aconteceu há mais de dois
mil anos! Exactamente no ano 30 a.C., na sumptuosa
Alexandria, capital do Egipto. A
noite de Natal de 2004 decorreu, como de costume, num ambiente de carinhosa
convivência. Regressei a casa mais tarde do que é habitual. Deitei-me e, fiel
a um velho hábito, ainda peguei num livro que tinha à cabeceira – “O Romance
de Cleópatra” –, mas creio que a leitura não foi além de uns quinze minutos…
Sem que desse por isso, o volume caiu-me das mãos; os olhos cerraram-se,
vencidos pelo sono, que acabou por levar a melhor no seu quotidiano braço de
ferro com a teimosa vigília… Subitamente,
o telemóvel retiniu com grande alarido e, caso curioso, com um toque
diferente: algo semelhante ao som rouco e solene de uma tuba, daquelas que
outrora se ouviam nas grandes cerimónias de Roma. Num gesto instintivo,
estendi a mão e levei o telefone ao ouvido.
Foi
assim que tudo começou. O
meu interlocutor era um tal Dolabela, que se disse amigo e oficial às ordens
do triúnviro Octávio! Foi tal a minha surpresa que não consegui falar. Do
outro lado a voz continuou, sem cuidar de saber se estava a ser ouvida:
Octávio requeria a minha urgente presença em Alexandria; a rainha, Cleópatra
VII Filipator, fora encontrada morta e o Princeps desejava conhecer, com absoluta segurança, as
causas do trágico acidente; para evitar demoras, já fora mandado para Ulissipone, Lusitânia, um avião supersónico, com ordem de
regresso naquela mesma noite!... Sem
dúvida que tão importante missão, malgrado o tom imperativo em que me foi
transmitida, era demasiado aliciante para ser desprezada… Hipótese meramente
académica, é claro, pois Octávio dispunha de outros
argumentos, mais persuasivos mas muito menos agradáveis, para me convencer a
aceitar o convite… E
lá fui eu para o aeroporto e dali para Alexandria, onde aterrei num abrir e
fechar de olhos. Como
cheguei ao palácio, não sei! Só me recordo de ter à
minha espera dois cavalheiros austeros, mas corteses, trajando togas de linho
alvíssimo. Falavam em latim (língua que, felizmente, aprendi no Liceu) e
conduziram-me a uma viatura bem diferente do Ferrari, topo de gama, que eu
secretamente imaginara: nem mais nem menos do que uma imponente quadriga
puxada por quatro cavalos, que mais pareciam outros tantos pégasos! Tive
pena de não ter visto o famoso Farol, uma das sete maravilhas do mundo. Soube
mais tarde que estava apagado em sinal de luto pela morte de Cleópatra. Conduzido
à presença de Octávio (que ninguém, que eu me lembre, tratou por Augusto) fui
então devidamente esclarecido. O sobrinho e filho adoptivo
de Júlio César, foi direito ao assunto: Cleópatra
fora encontrada morta no tálamo real! Houve
logo quem espalhasse o boato de que ela se fizera morder por uma víbora,
fugindo assim à humilhação de ser exibida como prisioneira, em Roma, no
cortejo triunfal do vencedor de Marco António! As
duas escravas, Iras e Charmion, também estavam
mortas, pelo que não era fácil obter qualquer informação fidedigna.
Desconfiando, com alguma razão, da polícia local, Octávio optou por chamar
alguém de absoluta confiança… e fui eu o escolhido. Com
carta branca para agir livremente, comecei por pedir
uma lista das pessoas com livre acesso às dependências reais. Fiz depois uma
busca minuciosa por todo o palácio, na esperança de encontrar qualquer
indício capaz de fornecer uma pista. Não fui muito feliz na diligência,
embora tenha descoberto, numa arrecadação raramente utilizada, uma cobra que
logo identifiquei, graças aos conhecimentos que adquiri no Instituto
Butantan, de São Paulo. O perigoso ofídio estava morto e habilmente envolvido
numa velha toga, enxovalhada e fora de uso. Da
misteriosa víbora, nem o mais leve sinal. Mas algo me fez voltar à câmara
funerária para observar as mãos e os braços da rainha, que aguardava ainda a
conclusão dos complicados preparativos da cerimónia fúnebre. E
obtive então esta certeza: Cleópatra morrera, de facto, com uma picada
venenosa; mas os quase imperceptíveis vestígios
deixados na mão da vítima não eram da áspide tão falada, mas sim de uma sua
parente não menos mortífera, a “mocassin” A. Halys (do género Ancistrodon)
encontrada na arrecadação!... De resto, uma áspide seria fácil de ocultar
numa cesta de figos, enquanto esta, com perto de um metro, não passaria
despercebida em tal meio de transporte… Não
foi difícil concluir ter havido um crime. Mas cometido por quem?... De
posse da lista, oportunamente anotada, refugiei-me na sala dos banquetes,
recostei-me num confortável triclinium e repeti a
leitura: DOLABELA
– Oficial às ordens de Octávio, com quem chegou a Alexandria na perseguição
empreendida após a batalha de Áccio; o seu
relacionamento com a rainha era o imposto pela etiqueta, já que ela
continuava a viver no seu palácio, por especial concessão de Octávio.
Lamentou a morte de Cleópatra por não poder conduzi-la a Roma, como estava
previsto. DIOSCÓRIDO
– Médico do palácio, em permanente contacto com a rainha, sobretudo desde que
ela tentara suicidar-se com um punhal; tinha por Cleópatra uma paixão doentia,
mas não correspondida. Evitou comentar o drama, parecendo muito abalado. DÉRCETAS
– Oficial romano, grande amigo de Marco António, de quem foi sempre dedicado
companheiro de armas, nas campanhas da Europa e da Ásia. Depois do desastre
militar de Áccio, fora enviado por António à Dácia
e às províncias imperiais do Mar Negro, tendo regressado ao Egipto na véspera
da morte do seu chefe e amigo. Na sua opinião, e a confirmar-se o boato, o
suicídio está perfeitamente de acordo com a personalidade de Cleópatra. ZILLAB
– Curandeiro líbio, do clã Psilo, povo especialista em domesticar serpentes;
com fama de conhecedor de antídotos antiofídicos, fora mandado chamar ao
palácio por Octávio, sem qualquer resultado positivo. Já servira no palácio
real, mas fora despedido por António, que tinha horror a serpentes.
Atarantado e medroso, só dizia, por mímica, não compreender as perguntas. Era
tudo! Enrolei o papiro com todos os vagares, enquanto ia saboreando o prazer
e a honra de ter merecido a confiança de Octávio. Fui depois ao seu encontro
para o informar das conclusões a que chegara, incluindo a da identidade do
criminoso. E segredei-lhe as minhas bem fundamentadas certezas… “É
isso! É isso mesmo! Em boa hora te chamei!” – E pondo de parte a sua condição
divina (implícita no título de Augustus que o Senado se preparava para lhe
conferir), avança para mim de braços abertos!
As
valentes palmadas que desferiu nas minhas costas, de mistura com as ruidosas
exclamações de apreço, foram suficientes para que eu acordasse deste sonho
fantástico, em que o passado se mistura com o presente, a realidade convive
com a lenda, e mortos e vivos conversam com total à-vontade! No
regresso, a Alfândega apreendeu-me o rolo de papiro com um rascunho do meu
relatório final. Suspeitaram – imagine-se!... – que
se tratava de um precioso documento roubado na Secção de Antiguidades
Egípcias do Museu do Louvre!... Haverá
alguém, entre os prezados confrades, que conheça o Conservador e consiga a
devolução do papiro? Agradecia que depois me enviasse um resumo do texto,
podendo guardar o original no seu arquivo policiário. |
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© DANIEL FALCÃO |
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