Autor

Dr. Acéfalo

 

Data

13 de Setembro de 1992

 

Secção

Policiário [64]

 

Publicação

Público

 

 

QUEM MENTE MAIS?

Dr. Acéfalo

 

Os berros do inspector Duplicado fizeram o inspector Álibi dar um salto na cadeira que amparara o seu corpo caído no sono. Estes gritos provinham do gabinete do inspector Duplicado que os proferia do telefone. Mas, passado o primeiro sobressalto, o inspector Álibi deixou-se ficar impassível. Havia duas razões para esta tomada de atitude: primeira, dado o tom de voz do inspector Duplicado, quem estivesse dentro de um raio de alguns quilómetros já devia estar ao corrente do assunto; segunda, sabia que Duplicado acabaria por vir ter com ele ao seu gabinete, evitando assim levantar-se da cadeira.

Conhecia o inspector Duplicado há muitos anos e nunca o (ou)vira assim por causa de um homicídio. A sua idade e o cargo que ocupava faziam dele um indivíduo fleumático, metódico e apegado a pró-formas e decretos-leis. Mais tarde, a caminho do local do crime, ficou a saber a razão de todo este alarido: a vítima fora um seu amigo de longa data.

Para alívio dos ouvidos de Álibi, chegaram finalmente a uma magnífica casa, em cuja fachada pontificava uma escadaria de acesso à porta principal, no 1º andar. Passado o “hall” de entrada, entraram num corredor, onde depararam com sete pessoas emudecidas que aí deambulavam, olhos fitos no soalho.

O primeiro que se prontificou a falar era o mordomo Morais. Apesar do à-vontade que pretendia transmitir, era visivelmente a pessoa mais apreensiva e ansiosa. Parecia querer arranjar todos os pretextos para conversar sobre coisas banais, mas a sua fala sincopada e a respiração descompassada não enganavam ninguém.

Antes de avançarem para o local do crime, os inspectores Duplicado e Álibi recolheram o depoimento daqueles que se encontravam na casa.

Nora da vítima: “Estive toda a tarde com a minha cunhada e o meu filho na sala do rés-do-chão que se atinge por meio desta porta do corredor. Eles mesmo podem confirmá-lo.”

Ao lado dessa porta ficava a que dava para a sala do crime, do lado oposto ficava a cozinha e a sala de jantar, e ao fundo a porta das traseiras.

Mordomo: “Após ter levantado a mesa estive toda a tarde a preparar a sala para o jantar, até às 17h30, altura em que fui ao escritório perguntar ao senhor pela merenda. Após ter aberto a porta, deparei com um espectáculo horrível: o meu patrão com uma faca cravada no pescoço. Logo a seguir, ouvi o carro dos filhos a chegar, e fui recebê-los ao ‘hall’, com tristes notícias para dar!”

“Não notou nenhum pormenor relevante?”, perguntaram os inspectores.

“Não!”, respondeu o mordomo, após engolir em seco…

O filho mais velho da vítima: “Após o almoço fui com o meu irmão ao centro equestre. Quando cheguei, fui logo ter com o meu pai ao escritório. Como desde pequenos fomos sempre habituados, bati à porta suavemente. Como ninguém respondeu, empurrei a porta a medo e vi, por uma nesga, o mordomo escondendo-se atrás das cortinas e um bocado de alcatifa empapada em sangue. Corri para o ‘hall’ onde, com o meu irmão, esperei por esse assassino, na esperança de que não me tivesse visto.”

Cozinheira: “Passei a tarde toda na cozinha, excepto quando fui ao quintal, onde estive uma meia hora…”

Foi então que o Duplicado avançou impetuosamente para o escritório, abrindo a porta com tanta força que por pouco não colhia com ela os presentes no corredor.

Quando a cozinheira viu o cadáver, ficou em pânico, tentando, em seguida, disfarçá-lo.

Nesse preciso momento entrou o neto da vítima, ainda criança que exclamou:

“Mas a faca tem um cabo igual à que a Josefina, a cozinheira usa na cozinha…”

“Foi ele… Foi ele! Agora me lembro que ele foi à cozinha a meio da tarde!”, exclamou a cozinheira, apontando para o mordomo.

“Porca mentirosa”, replicou o mordomo, lançando-se agressivamente sobre ela. “Não voltei à cozinha depois de ter levantado a mesa…”

“E não reconheceu a faca?”, inquiriu Álibi.

“Ah! Pois… Agora me lembro, mas na altura não me chamou a atenção.”

O inspector Álibi sorriu e interrogou-se sobre o que se passaria na cabeça do mordomo e de Josefina, a cozinheira…

 

– Quem matou?

– Justifique a sua afirmação, procurando não só incriminar o culpado, mas também, sempre que possível, eliminar as suspeitas que houver sobre os restantes.

 

SOLUÇÃO

© DANIEL FALCÃO