Autor

Falco

 

Data

11 de Outubro de 1986

 

Secção

Sábado Policiário [46]

 

Competição

Torneio de Outono

Problema nº 2

 

Publicação

Diário Popular

 

 

UM CRIME PARA LÁ DA JANELA

Falco

 

Da minha janela eu observo atentamente a inata sabedoria que a aranha tem para caçar. Lentamente, com uma experiência de milénios, ela desce em passos macabros e silenciosos sobre a vítima… necessidade natural ou assassínio? É apenas uma criação da natureza, em contraste com a abominável cena que despertou de uma mente humana! Eu e a minha janela somos testemunhas de um crime que jamais poderei contar às entidades policiais! Eu, tal como muitos outros, sou vítima dos traços de entendimento que criam a sociedade actual. Fugi em desespero profundo de uma casa de alienados, para vir estabelecer-me neste quarto, renunciado por todos.

Chamavam-me o coleccionador! Esse nome devia-se ao facto de ter como «hobby» coligir troféus de caça. E ainda hoje o faço!… Tento assim esquecer a corrente amargura em que vivo. Nunca poderei dizer o que testemunhei enquanto no mundo existirem formas de rejeição para aqueles que, juntamente comigo, são chamados de malucos!… Agora guardo na memória, para sempre, a visão não partilhada de um crime.

Recordo-me que nesse dia, como em tantos outros, achava-me espionando atentamente, com a minha luneta, os afazeres daquela que viria a sucumbir à voz mortal de uma adaga. Toda aquela beleza corporal e todo aquele meio em que se movimentava cegavam-me os olhos com uma luz forte e penetrante! Pouco a pouco a noite foi-se assumindo, mergulhando o quarto que observava nas mais profundas trevas. Fazendo de si exemplo digno do mais profundo silêncio, a harmoniosa criatura consumia, nos mais variados actos, os últimos momentos da sua vida. Por fim, num holocausto imprevisível, eis que surgiu a consumação da tragédia! De entre a escuridão brotaram fios de sangue que deixaram transparecer a ferida involuntária que o assassino praticou com a sua adaga. Como entrou, por entre a escuridão, assim fugiu! Quem teria matado aquela inocente criatura?!

Esta teia criminal depara-se com três suspeitos. Todos eles são sobrinhos da vítima! O primeiro tem por nome «A Fera», o que lhe dá – sem razão – um espírito de marginal. Na verdade, trata-se de um ex-caçador de safaris que teve a sua carreira terminada por questões ideológicas da «Titia». Daí gerou-se um ódio que o levou a escrever várias cartas de ameaças de morte à vítima. Todo o seu espólio de caçador, incluindo adagas, punhais e outras armas de caça, foi repartido pela família. A principal suspeita reside no facto de a arma do crime lhe ter pertencido. Por curiosidade, digo-lhes que nunca viu a tia desde que nasceu!

O «Ricaço» também é um dos suspeitos. Além de ter sido irmão do «Fera», também foi o meu melhor amigo! Era o único, até ao momento, a saber da minha existência e o motivo da minha estada neste quarto. Era um tipo às direitas! Deu-me dinheiro para pagar a minha alimentação, embelezar o quarto, alugar o mesmo e para… as garotas. Em troca, apenas queria saber coisas sobre a minha colecção. Além do dinheiro, também me dava calçado e vestuário que lhe havia pertencido. A Polícia suspeita de ter sido ele o provável autor do crime porque, entre as ervas do jardim, foram encontradas marcas pertencentes a um par dos seus sapatos. Falo de tudo isto no passado porque no dia a seguir ao crime enforcara-se. Sabia-se que estava muito endividado, e a sua morte fica por esclarecer. Medo dos cobradores ou arrependimento?

Em conversas por mim ouvidas, a Polícia chegou a conclusão de que o assassino conhecia bem a casa. Porquê? Bem… a isso não sei responder! Neste ponto, as suspeitas também incidem sobre a doce «Afrodite», prima dos dois irmãos. Como era a única a viver com a tia vitimada conhecia a casa de uma ponta à outra. Além disso, ela é dona de uma colecção de punhais e adagas, na maior parte pertencentes ao «Fera». A colecção encontra-se no quarto do crime! Em contradição a esta última suspeita, está o depoimento de uma vizinha. Esta afirma que, durante a tarde, no dia do crime, andou a limpar a colecção, juntamente com a vítima. Ambas repararam que não faltava qualquer arma! A partir dai, e até que se deu o crime, a infortunada senhora nunca mais saiu do quarto. Numa investigação posterior, a Polícia concordou com a veracidade do depoimento.

Por fim, vem o cofre da vítima! Este foi aberto – não arrombado – pelo assassino. Numa outra investigação, a Polícia concluiu que o cofre estava vazio. O interessado foi de mãos a abanar.

Para a decifração deste caso, Sherlock Holmes diria: «Deduza! Elimine todos os outros factores e o que resta deve ser a verdade!»

 

SOLUÇÃO

© DANIEL FALCÃO