Autor Data 29 de Maio de 1994 Secção Policiário [152] Competição Prova nº 4 Publicação Público |
FLO E O CASO DO ESTRANHO PESCADO Flo Nunca esquecerei, por
muitos e bons anos que viva, aquela atribulada história, passada no 29 de Agosto
deste ano. Às 4h da manhã, preparava com a minha amiga Iva, em fato de
treino, o nosso material de pesca bem como a comida e as bebidas para todo
esse dia. A proposta era uma pescaria na Praia de Pedrógão, mais precisamente
junto ao farol do molhe norte, uma vez que a ‘dica’ de uns amigos comuns
referia estar a sair bom atum nesse sítio. Havia que aproveitar… Como ambos
adorávamos tal desporto, perder a oportunidade de pescar alguns exemplares
seria lamentável. Às 5h40, já a caminho,
verificámos que a sorte do tempo não estava do nosso lado. Um nevoeiro bem
cerrado instalara-se em todo o percurso, o qual, com a aproximação da costa
se ia agravando. Só para percorrer os 70 km de Coimbra à Praia de Pedrógão
demorámos duas horas e 25 minutos, tempo superior em muito à viagem que se
faz normalmente até à capital do país. Os faróis de nevoeiro, mesmo à
distância de um metro, não facilitavam a visão. Com muito cuidado e atenção
lá conseguimos entrar no molhe onde se localizava o pesqueiro. O último
quilómetro foi percorrido quase a passo, tendo ambos ficado com a impressão
de que o nevoeiro se tornara mais espesso, se é que isso ainda era possível. Chegados ao sítio,
restava-nos esperar. Naquelas condições não se poderia pescar. O perigo
espreitava. Bastaria um pé em falso e lá se iria a pescaria por água abaixo… Uma vez que assim era, decidimos comer
uma ‘bucha’ e beber algo quente, pelo que saímos da carrinha. Enquanto eu
abria a porta de trás para sacar o cesto dos ‘comes’, a Iva afastava-se,
embrenhando-se no nevoeiro e desaparecendo momentaneamente da minha vista.
“Alguma necessidade…”, monologuei, mentalmente, com
os meus botões. Não tinham passado dois minutos quando me surge ela
completamente transfigurada e aos gritos. Segundo afirmou, encontrava-se um
vulto nos rochedos a sangrar da cabeça! Rapidamente, dirigi-me para o
cadáver, que constatei tratar-se de um homem seminu, caído em decúbito
dorsal. O morto ali estava aos
nossos pés. Mau grado o destino que acabara por se abater sobre o
desconhecido, era a nossa hipótese de brilhar a grande altura, recolhendo os
indícios e, por que não, investigando aquela morte. Imaginava,
antecipadamente, a inveja que os, nossos amigos policiaristas
sentiriam! A experiência adquirida por
mime pela Iva na problemística, à mistura com
técnicas colhidas em alguns filmes e livros policiais, iria trazer os seus
frutos. Finalmente, colocaríamos à prova toda essa gama de conhecimentos. A percepção
levou-me a não menosprezar nenhum pormenor por mais insignificante que se
apresentasse. Dei o meu bloco de apontamentos a Iva e ela foi anotando:
tratava-se de um homem de boa compleição física, aparentando 30 anos, 1,77m
de altura, usando camisa de xadrez miudinho, condizendo com a gravata de
outra cor, combinando tudo com o fato cinza, olho de perdiz.
Nos bolsos do casaco e das calças, nada que o identificasse. Apenas no bolso
esquerdo da camisa um bilhete, dizendo (sic) “não
aguento a pressão…”, enquanto o resto da mensagem estava indecifrável,
destruída pela humidade do mar, cujas ondas, embora pouco agitadas, vinham e
iam, num contínuo movimento, cobrindo o corpo. Os pés e as mãos amarrados
com um fio de “nylon” eram um desafio à nossa
capacidade de escolha entre as imensas possibilidades quanto ao que se
passara antes da morte efectiva do indivíduo. As
unhas envernizadas e o cabelo bem cortado indiciavam ser alguém com certo
requinte. No ombro esquerdo, um orifício com sangue seco. Um outro no
parietal do mesmo lado, com o mesmo aspecto.
Concluí que ambos os projécteis, por ausência de
orifícios de saída, se alojavam no interior do corpo. Um outro pormenor nos
chamou a atenção: faltava o salto do sapato esquerdo! Bem junto ao corpo,
algo enrolado, podíamos ver um saco de linhagem bastante encharcado, com uma
corda pendendo de dentro. Resolvemos dar uma vistoria
mais detalhada aos rochedos, na esperança de encontrar mais elementos que
permitissem revelar a identidade do assassino. Sim, porque, não havia
dúvidas, estávamos perante um homicídio. Fomos felizes nas pesquisas: bem lá
no fundo, entre os rochedos, na água, apareceu a “menina”, uma fusca calibre
6,35mm, retirada apressadamente pela Iva para lugar enxuto. Não havia engano!
Era a arma do crime. Tinha-mos a certeza disso, pois fora disparada há pouco
tempo e ainda se mantinha quente. Penosamente, subimos os
rochedos. Já ao cimo, descobrimos um rasto de sangue fresco. Presumimos que a
vítima se tenha arrastado até ali para pedir auxílio, mas alguém tentara,
muito à pressa, apagar os vestígios deixados sem o conseguir. Trocamos um sorriso
cúmplice, sem diálogo. O nosso espírito rejubilava de contentamento, pois já
nos víamos a algemar o criminoso, tais eram os elementos que possuíamos. A
Iva manteve-se estoicamente sozinha junto ao cadáver apenas com o denso
nevoeiro a rodeá-la. Eu, quase às apalpadelas, cheguei ao farol, subi os 80
degraus e, com a autorização do faroleiro, usei o telefone para comunicar à
polida, pondo-a ao corrente. Algum tempo mais tarde,
apareceram dois agentes, a quem explicámos tudo o que sabíamos e mostrámos
todos os elementos de que dispúnhamos sobre o caso. Deixaram escapar um
“muito bem”, que nos provocou, por que não dizê-lo, uma pontinha de vaidade,
tendo a Iva chegado a dar-me um beliscão no braço. Nesse instante senti um
esticão no braço. Fui abanado por alguém! Era a Iva que chamava, com
insistência. – Que se passa?,
disse eu, abrindo os olhos lentamente, habituando-me à claridade da luz
fluorescente da sala de estar. – Tens estado a dormir
agitado. Foi algum pesadelo? Respondi que não era bem isso,
mas tinha a ver com a nossa pescaria no molhe de Pedrógão. – Não me digas?,
atirou a Iva, admirada. Como é? Vamos ou não? Já tenho tudo preparado, mas
para o farol de Pedrógão vai ser difícil. Tenho estado a ouvir na rádio a
notícia da morte do faroleiro. Foi encontrado num saco, morto por
estrangulamento. O alarme foi dado por pescadores desportivos que por ali
andavam. A polícia não deixa passar ninguém. Aquela notícia causou-me um
arrepio que me percorreu todo. Fiquei pensativo. Entre o sonho e a realidade,
algo batia certo! Diga o quê. Poderemos
aceitar plenamente toda a história? |
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© DANIEL FALCÃO |
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