Autor

F. Perlico

 

Data

14 de Abril de 1993

 

Secção

Policiário [93]

 

Competição

Supertorneio Policiário 1993

Prova nº 3

 

Publicação

Público

 

 

UM CASO NEBULOSO...

F. Perlico

 

Saboreava com prazer o último cigarro do dia, o último copo, quando um retinir irritante ecoou pela sala. A inércia que se apoderara de mim quase me fez não o atender. Porém, levantei o auscultador. Fiz mal.

Através da neblina fria e envolvente, divisei um palacete imponente, de onde sobressaíam dois ou três ténues e difusos focos de luz. A noite escura lançava tons sinistramente esbranquiçados sobre o edifício.

Um prolongado toque de campainha clássica penetrou no silêncio, anunciando a minha chegada. Quando a porta se entreabriu, deparei com um mordomo condizente com o cenário: um Boris Karloff nos seus tempos áureos.

– Sou o inspector Melo – anunciei-me.

– Faça favor de entrar – a voz coincidia com o físico. Conduziu-me a uma pequena sala. – Vou chamar a senhora – murmurou.

A dependência onde me encontrava não destoava do estilo “ostentação” da entrada. Móveis pesados e trabalhados, canapés, “bibelots”, tudo impessoal, a merecer a minha indiferença. Indiferença não foi propriamente o que senti quando me surgiu “a senhora”. Custar-me-ia a crer, depois de olhar para a vítima, que ela fora sua mulher.

– Como está, inspector? – dirigiu-se-me com um misto de sociável e altivo e com uma voz “dietrichiana”, que me produziu um arrepio significativo. – Mandei-o chamar por causa do meu marido. Está morto, lá em cima! – revelou-me ela sem qualquer sentimento perceptível. – Siga-me, por favor – continuou.

Segui-a. Subimos a escada. Suponho que a “ostentação” mobiliária se mantinha. Pouco reparei nela, pois outra, bem mais ondulante, escadas acima, absorvia por completo a minha atenção…

Abriu a porta do escritório. Quando entrámos, pude apreciar a pouca arrumação do mesmo. Por outras palavras, fora “virado do avesso”. Cofre arrombado, livros pela alcatifa fofa, de pêlo alto, que cobria totalmente o chão, cadeiras tombadas, gavetas abertas, muitos papéis pelo chão e pequenos pedaços de terra junto à janela aberta, que se encontrava por trás da vítima…

Quanto a Martins Rocha, o ex-multimilionário, encontrava-se sentado na sua secretária (igualmente remexida) de mogno, um pouco descomposto pela profunda mossa que ostentava no parietal direito e que, provavelmente, fora a causadora de a cabeça repousar, junto a uma chávena de café, agora vazia, sobre o tampo da secretária…

Tombada junto à vítima, uma pesadíssima estatueta de bronze, a cuja base se encontrava agarrada uma massa de sangue e cabelos, cuja proveniência devia ser a mesma do sangue que salpicava a alcatifa, a secretária, a cadeira da vítima. Esclarecedor…

Ainda no escritório, eu e a viúva ouvimos chegar o carro do médico que confirmaria o óbito. Já pouco havia a fazer ali. Pedi-lhe para dar uma volta lá por fora. Ela prontificou-se de imediato a acompanhar-me, mas tinha de ir buscar um agasalho ao quarto. O ranger da porta do escritório, quando a fechei, fê-la estremecer ligeiramente. Vi-a contornar o corredor e dirigir-se ao seu quarto e, por ter ido atrás dela, verifiquei tratar-se de uns bons 30 metros. Chegados lá, esperei um pouco, até à sua saída do quarto, ornamentada com um espectacular casaco de marta. Não me faria rogado para me afundar nele, e a sua proprietária parecia aperceber-se disso, mas, agora, valores mais altos se levantavam…

Ao descermos as escadas surgiu em cena o auto-denominado sobrinho da vítima. Jovem, corpo de Adónis, ar esbaforido, revelou-nos, a pergunta minha, que acabara de chegar da cidade, onde fora ver um filme e beber um copo. Não sabia de alguém que quisesse tanto mal ao tio que fosse capaz de lhe dar com a estatueta na cabeça. Prosseguimos em direcção à saída, onde se encontrava o “Frankenstein” e Sousa, o médico. Perguntei-lhe se dera por alguém sair ou entrar entre a última vez que viu o seu patrão vivo e a minha chegada, ao que ele respondeu que apenas dera pela saída do sobrinho da vítima.

Lá fora contornámos o edifício até nos encontrarmos por baixo da janela do escritório. Uma hera, bem cuidada, cobria a parede desde o canteiro de terra mole até à janela iluminada. Naquele, para além de meia dúzia de pegadas normais, duas tinham buracos rectangulares, mais profundas, paralelos à parede. Olhei em redor e inspirei o ar frio da noite…

– Então, descobriu alguma coisa? – inquiriu ela, aparentando um misto de ansiedade com um vago sentimento indefinível.

– Já vi o que me interessava. Voltemos para dentro. – contornámos o edifício pelo lado oposto daquele por onde viéramos. Na garagem, três carros. Diria antes, três “bombas”. O chão de terra batida à saída da garagem não apresentava quaisquer marcas, para além daquelas que íamos deixando ao caminhar.

Voltámos ao local do crime. Nele se encontravam todos os personagens com quem contactara nessa noite. Enquanto o Sousa ultimava a vistoria ao corpo, eu deitava uma vista de olhos pelo material que estava espalhado pelo chão, pelo cofre de porta aberta, até que cheguei ao parapeito da janela, onde confirmei alguns dos meus pensamentos. Ao olhar para o exterior, nada descortinei por entre o breu esbranquiçado que pairava no ar. Entretanto, o médico terminara a sua função e, com a sua permissão, revistei os bolsos da vítima. Nada de especial encontrei, a não ser a carteira da vítima, recheada das notas “mais gordas” e dos seus documentos pessoais, no meio dos quais estava um pequeno envelope, endereçado ao dr. Coelho e que continha um papel com os seguintes “gatafunhos”:

SSTSTC EAETOO NNMAFM HTOMAE OOTELL RSENEE

Faltavam os depoimentos “oficiais” dos presentes. O “Boris” pouco acrescentou ao que já revelara, excepto que se deitara cedo (após, lembrava-se, uma segunda rangidela da porta do escritório do seu patrão), cansado pela ajuda que dera nas obras do piso de entrada da garagem; e o Adónis limitou-se a balbuciar meia dúzia de palavras, aparentemente consternado; a jovem Marta (…) declarou que recolhera cedo ao quarto (não sem antes ter levado um café ao seu marido), onde se entretivera a ler e ouvir um pouco de música até que ouviu uns ruídos estranhos no escritório e resolveu ir ver o que se passava. Lá chegada, viu o estado do marido, tendo resolvido de imediato avisar a polícia. Entretanto, precipitara-se para a janela, que vira aberta, tendo ainda tempo de ver um vulto negro a fugir.

Ainda segundo ela, o marido costumava ter muito dinheiro no cofre, tendo nessa manhã ido ao banco, para levantar uma grande maquia. Para ela, o móbil da sua morte era evidente…

Pouco mais havia a fazer ali. Ninguém gostava daquele velho, ao que se sabia um homem precavido e cauteloso, alguém o teria roubado e morto, poucos se importariam com o seu desaparecimento…

Saí acompanhado do Sousa. Os únicos dois carros estacionados à entrada constituíam massas negras disformes. Entrámos, cada um no seu, e afastámo-nos daquele palacete, que iria em breve mudar de proprietário, em direcção à cidade, distante uma boa meia dúzia de quilómetros.

De manhã fui ao banco. Falei com o sr. Santos, o gerente, velho amigo e confidente da vítima, que confirmou o levantamento avultado. Soube, também, da existência de um testamento recente, em que todo o seu dinheiro seria distribuído por algumas instituições de caridade. O paradeiro do documento era desconhecido, mas, quando o seu advogado, o dr. Coelho, chegasse do estrangeiro, talvez a questão ficasse resolvida. Pareceu-me que não contara tudo o que sabia…

Saí do banco. Puxei de um cigarro. Ao olhar para o maço e o isqueiro, lembrei-me do papel que recolhera da carteira de Martins Rocha. Seria que…?

 

– Faça um relatório, o mais detalhado possível, sobre este caso, passando por nomear os principais suspeitos e pela decifração da mensagem.

 

SOLUÇÃO

© DANIEL FALCÃO