Autor

Hannibal

 

Data

30 de Agosto de 1991

 

Secção

O Detective - Zona A-Team [133]

 

Competição

Torneio dos Mestres

Problema nº 2

 

Publicação

Jornal de Almada

 

 

PROBLEMA DE CONSCIÊNCIA

Hannibal

 

Se existem dias em que não se deve sair de casa, piores são aqueles em que não se devia sequer acordar.

A prova disso foi aquele domingo.

Contra o que me é habitual, quando estou de folga, levantei-me cedo e, quando me preparava para o duche da ordem, não havia água.

Fui para a cozinha na intenção de me «bater» com um «big Breakfast» mas, como me esquecera de pedir à mulher a dias para atestar o frigorífico, nada havia de útil e a parca existência estava mais do que congelada. Procurei uma camisa lavada, mas como na sexta-feira não passara pela lavandaria, tive que me contentar com uma camisete.

Saí para tornar a «bica» no café do costume e, como certamente já adivinharam, este estava fechado.

Para resumir, acabei por chegar à Gomes Freire tarde e de táxi, já que o meu «Boguinhas» resolveu, naquele dia, meter «férias».

Como as «desgraças» quando aparecem é à «molhada», tive que substituir o Luís Rodrigues, cuja mulher acabava de dar entrada na Alfredo da Costa.

Foi assim que me encontrei de Piquete ao Serviço de Urgência, no dia que reservara para pôr a burocracia em ordem.

A tarde foi até bastante sossegada e, depois de uns quantos ofícios precatórias e mandados de captura, andava eu à «caça» de uma televisãozinha para ver o Argentina-República Federal Alemã, quando o 535380 tocou.

Era a primeira ocorrência do dia.

Meia hora foi o tempo que o carro da brigada levou, sirene ululando, até Alapraia, muito próximo de S. João do Estoril.

Quando franqueamos os portões do palacete já lá se encontravam duas viaturas da PSP de Cascais e uma ambulância da Emergência Médica.

O Chefe Aguiar, meu primo e velho amigo, avançou logo e foi-me pondo ao corrente da situação.

A «casita» pertencia a Henrique Santos, conceituado industrial da nossa praça, que fora encontrado morto, no escritório, com um tiro na cabeça. Fora o advogado da família que telefonara à polícia, que chegara ao local em dez minutos. Todos os presentes, família, amigos e criadagem, tinham sido «encafuados» na sala de jantar e vigiados por dois agentes. Confirmada a morte, a janela e a porta da sala foram fechadas, aguardando a nossa chegada. O rés-do-chão e os terrenos ajardinhados circundantes foram revistados, tendo sido encontrada uma pistola, no canteiro, a cerca de dois metros da janela do escritório. Segundo parecia, depois do almoço as dezoito pessoas presentes dividiram-se em pequenos grupos, que se mantiveram pela tarde fora sem alterações significativas, até que a vítima se retirara para o seu escritório e algum tempo depois tinham ouvido um tiro. Todos diziam nada saberem do caso e o único facto saliente era a acusação que o filho mais velho do morto, Miguel, fazia ao sócio do pai.

Dei nova mirada no casarão e no «court» de ténis, à minha direita, e entrei no enorme hall. Defronte, uma escadaria dava acesso ao andar superior: à minha direita ficava o que parecia ser um misto de bar e sala de estar, com a casa de jantar, agora bastante povoada, contígua, ao meu lado esquerdo ficava o escritório, que antecedia o quarto do casal e a casa de banho anexa, ao fundo e depois de outra casa de banho, havia uma estufa, a cozinha e a copa.

Tudo era grande, arejado e luxuoso, com o requinte que só o dinheiro, muito dinheiro, pode dar.

Afinal o José Henrique Monteiro dos Santos sempre conseguira.

Ainda o estou a ver, acabadinho de chegar à minha Companhia, «maçarico» de todo, mas camarada de primeira. Cimentaramos, no pó das picadas do norte de Angola, uma amizade baseada na juventude na entreajuda e no perigo, que a vida, separando-nos, não conseguira de todo desfazer. O sonho dele era ser rico (de quem não era?), chegara lá e agora estava morto.

Realmente há dias.

Comecei por vistoriar o cenário da morte ordenando aos meus homens que escolhessem um local (a estufa foi o preferido) para interrogarem o «pessoal» presente um a um.

O escritório estava mobilado com gosto e possuía toda a nova tecnologia que um executivo moderno tem ao seu dispor as estantes estavam recheadas de bons livros, técnicos e não só, inclusive com algumas primeiras edições de Rousseau e Sartre e havia duas ou três boas cópias de pintores famosos e um genuíno Lebrun a arrumação e a limpeza eram impecáveis. O corpo do industrial estava sentado, com o tronco descaído para o seu lado esquerdo semi-apoiado no braço do cadeirão na quina da secretária, com a cabeça em cima do tampo e os braços caídos ao longo do corpo.

Visto da porta, o seu perfil direito destacava-se contra a claridade que a enorme janela, ao fundo, projectava, dando a ilusão que dormia.

Tendo em atenção os dois buracos existentes no seu crâneo, não havia dúvida que o José Santos «dormia» o seu grande e último sono.

No temporal direito, mais ou menos entre o seio frontal e o corneto superior, o ferimento era largo, de contornos irregulares, lacerados, sem tatuagem, enquanto do outro lado a bala, depois de atravessar o hemisférico cerebral, abrira um rombo, um rombo do tamanho de um punho, no parietal, salpicando a carpete, quase junto ao cadeirão, de gotículas de sangue, massa encefálica e esquírolas ósseas.

No tampo da secretária, junto à cabeça, havia uma mancha grande de sangue que começava a coagular.

A morte fora instantânea e o «espectáculo» não era nada agradável.

Na secretária nada havia, para além dos objectos normais, que chamasse a atenção.

No chão, do outro lado da papeleira, encontrei unia cápsula .32, mas do projéctil nem rasto.

Memorizei tudo quanto pude e acabei por dizer, aos homens da Medicina Legal, para levarem o corpo.

Parei para fumar um cigarro e pensar um pouco, mas não cheguei a qualquer conclusão lógica.

A arma achada era uma Beretta, modelo 81, calibre 7,65 m/m, com onze cartuchos intactos no carregador, não havendo dúvida que fora usada recentemente.

Dei uma volta pelo canteiro não encontrando qualquer pista.

Entretanto os meus homens tinham acabado os interrogatórios preliminares e agora era hora para ler o «cozinhado» que haviam preparado.

Abreviando, no momento do tiro, ouvido por todos, a única filha do Santos, a filha do bancário e o filho do advogado estavam no campo de ténis trocando uma bolas.

As mulheres do advogado, do bancário e do médico, encontravam-se na estufa, admirando as flores da dona da casa.

Preparando o jantar, na cozinha, estavam, para além da cozinheira e da criada, a mulher do Santos e Alice, sua amiga, e a mulher do engenheiro, sócio das Indústrias Henrique Santos.

Óscar Gomes, advogado, Álvaro Costa, médico com quem a vítima mantivera, em surdina, uma longa conversa, antes de se retirar, Carlos Freitas, gerente bancário, Joel Oliveira, engenheiro, Miguel e Telmo Santos este o filho mais novo da casa, encontravam-se no bar da sala de estar onde o Ernesto um misto de criado-jardinheiro-motorista, lhes ia preparando uns «drinks».

Qualquer das famílias visitantes eram amigas da família Santos há muitos anos.

Segundo o dr Gomes as Indústrias Henrique Santos atravessavam uma grave crise estando a falência dependente de empréstimo bancário mas o futuro da família estava assegurado, graças a um valioso seguro de vida, que cobria duas hipóteses, morte natural ou acidental, como era o caso.

Miguel Santos parecia estar interessado em «bater» no Oliveira, afirmando que este era o culpado da morte do pai, devido a desvios de matérias, dinheiro e clientes que fizera, nos últimos anos, nas fábricas que geria, sendo também o motivo principal para o já falado divórcio dos pais.

Carlos Freitas, por sua vez, declarou esperar que o facto de ter informado o amigo, naquela tarde, que o seu banco tinha negado o empréstimo pedido e estar a direção disposta a acionar as hipotecas existentes, nada tivesse a ver com o acontecido.

Dos três serviçais, que não sabiam o que quer que fosse, só o Ernesto comentou achar que o patrão, nos últimos dias, andava muito preocupado.

Cristina Santos, a ora viúva, declarou nada saber, quer do sucedido, quer dos negócios do marido, acrescentando que só gente maldosa é que poderia por em causa a sua qualidade de esposa e mãe.

Os jovens Afonso Gomes, Sandra Freitas e Catarina Santos, nada de novo trouxeram ao inquérito, o mesmo acontecendo com as mulheres do advogado, do médico, do bancário e do engenheiro, embora a última tenha dito, num aparente desabafo, que o marido nunca se separaria dela.

Joel Oliveira exaltou-se com o inquiridor e veementemente refutou as insinuações de ser ele o culpado das dificuldades porque passava a sociedade, dizendo que isso eram boatos da concorrência, sendo certo que teve um comentário curioso acerca da D. Cristina.

– Um homem é um homem – disse ele.

Álvaro Costa foi o único que trouxe algo de novo ao caso, quando declarou que o José Henrique não teria mais do que três meses de vida, devido a um carcinoma cerebral, e que se não fosse a insistência do falecido não seria naquele dia que o informaria de tal, parecendo que tinha algo mais a dizer o quê não se sabe porque se fechou em «copas».

A finalizar a leitura, havia ainda que ninguém estranho fora visto nas imediações, a arma achada, segundo os familiares, era propriedade do morto, e que os primeiros a chegarem junto a este foram o Miguel e o Teimo, enquanto os homens procuravam, na confusão gerada e junto à porta, que as mulheres não entrassem na sala.

Do miúdo o Teimo, nada fora conseguido pois começara por falar na mãe «saltara» para o pai, depois para o irmão, que não deveria ter feito o quê não se soube porque se calou e o agente não conseguiu «arrancar-lhe» nem uma palavra mais.

Anoitecia, apetecia-me uma cerveja bem gelada, os cigarros estavam-se a acabar e eu procurava que as «células cinzentas» me dessem a solução do caso.

Ao fim de algum tempo de meditação telefonei para o Instituto de Medicina legal e pedi que fossem feitos testes reagentes de Guttmann e brucina, segunda a técnica de Benitez.

Duas horas depois, já conhecedor dos resultados, fechei-me com o Miguel na estufa e depois de uma longa conversa possuía finalmente a solução do caso e, também, um problema… de consciência.

 

SUGESTÃO:

Faça um relatório, o mais detalhado possível, sobre este caso, dizendo-nos a que conclusão chegou o homem da Judiciária.

 

SOLUÇÃO

© DANIEL FALCÃO