Autor Data 27 de Novembro de 1994 Secção Policiário [178] Competição Prova nº 11 Publicação Público |
O MISTÉRIO DO CADÁVER DESCALÇO H. Sapiens A denúncia chegara às
autoridades portuguesas meticulosamente elaborada. O sumptuoso colar de
diamantes roubado dias antes em Amesterdão ia ser encaminhado para Portugal
com destino a uma organização especializada em tráfico de jóias. Viria desmontado
e as suas pedras acondicionadas no interior das peças ocas de um jogo de
xadrez. Eram fornecidos os sinais do portador, horário do voo e local do
contacto. À polícia restava só montar o dispositivo de recepção de forma a
deitar também a mão aos receptadores. O previsto local da transacção foi
discretamente cercado pelos agentes, tarefa facilitada pelo facto de se tratar
de um prédio de apartamentos, de construção recente, erguendo-se isolado num
amplo terreno desocupado e apenas coberto por vegetação rasteira e arbustos
espontâneos. Tudo se passou de acordo
com aquelas preciosas informações. Tinha já caído a noite quando o portador
chegou, transportando uma mala, e penetrou no edifício. Um quarto de hora de
espera e então, a um sinal, a brigada avançou com destino a um dos
apartamentos do 5º andar onde devia efectuar-se o encontro. Era uma habitação
desocupada, ainda por vender. Um indivíduo suspeito foi
apanhado nessa altura, quando ia a sair furtivamente do prédio a coberto da
escuridão, possivelmente por ter sentido a presença da polícia no local.
Tratava-se de um conhecido operacional lusitano, procurado pelas autoridades
como autor de uma série de crimes violentos. O correio holandês foi encontrado
minutos depois no apartamento referenciado. Infelizmente estava morto. Foi à luz de uma lanterna
portátil que o adjunto Etelvino expôs as suas preocupações, coçando a testa,
desanimado: – As tais peças de xadrez
desapareceram. Não estão no apartamento. Inspeccionámos tudo palmo a palmo,
trabalho fácil numa casa vazia. Verificámos os depósitos dos autoclismos,
desaparafusámos as sanitas, vimos os armários da cozinha, os tubos das
chaminés da cozinha e do fogão de sala, as caixas de derivação da instalação
eléctrica e tudo o mais. Temos gente especializada para isso. Nem sinal da mercadoria. O recém-chegado chefe André
escutava, balançando o corpo nas pontas dos pés, enquanto o adjunto continuou
a sua desalentada exposição: – Sempre é um volume apreciável.
Verificámos pelo estojo vazio que são peças cuja altura vai de 6 a 10
centímetros e são trinta e duas. Muita peça… Não é coisa que se esconda num
buraquinho. Já demos uma vista de olhos ao resto do prédio. Estamos a
concluir a busca. Há quatro ou cinco apartamentos habitados nos andares
inferiores. Gente séria, com bom aspecto. O resto, tudo vazio. Portas bem
fechadas, incluindo os acessos ao telhado. Também verificámos os elevadores
pormenorizadamente. Nada, mesmo nada… O chefe André assentou os
tacões no chão e disse: – Muito bem por agora.
Vamos então ver o cadáver que nos deixaram. Passaram do átrio à sala
principal. O adjunto Etelvino parou no limiar e atreveu-se a um sorriso: – Ainda por cima temos aqui
um pormenor esquisito. Veja, chefe: o morto está de pés ao léu! Era verdade. O foco de luz
mostrou o corpo de um homem caído de costas no meio da sala, exibindo dois
grandes pés descalços. – Diacho! A gente vê cada
uma… Iria ele lavar os pés? – Impossível, chefe. O
apartamento ainda não tem água. O chefe André pôs-se a dar
estalinhos com a língua. O seu rosto ganhou uma expressão divertida.
Pressentia que estava ali um desafio, uma charada a deslindar. Tinham na sua frente um
indivíduo de uns 30 anos, alto, magro e de olhos azuis. Vestia um fato cinzento
ainda novo, camisa creme e gravata azul com pintas brancas. Um sujeito
decente, de aspecto cuidado. Os pés descalços, muito brancos, perturbavam de
forma insólita a gravidade natural do cenário. – A causa da morte? –
perguntou o chefe André enquanto ia tendo outros pensamentos. – Foi agredido na cabeça e
depois estrangulado, possivelmente em estado de inconsciência. Trabalho feito
com as mãos. Temos as marcas bem visíveis. – Presumo que não
encontraram os sapatos e as peúgas… – Não. Mas essa questão
está esclarecida. Alguém queimou tudo ali no fogão de sala. Quando chegámos
havia um montão de cinzas ainda quentes. Seguiu tudo para o laboratório.
Distinguiam-se restos de jornais e ainda bocados semicalcinados das solas dos
sapatos. Foi um trabalho feito à pressa. O fogo não chegou a atingir a
temperatura suficiente para… O chefe André atalhou a
explicação: – Deixe lá. E aquela mala?
Era dele? – Exacto, chefe. Contém o
estojo do xadrez agora vazio e também alguns artigos de “toilette”: máquina
de barbear, dentífrico, loções. Sondámos tudo: não há fundos falsos ou
esconderijos. – Não havia roupa interior,
pijama, essas coisas? – Nada. O homem tinha na
carteira o bilhete de regresso com marcação para amanhã. Provavelmente ia
passar a noite em algum bar. Ficaram em silêncio por uns
instantes. O adjunto Etelvino aproximou-se de uma das janelas da sala que se
encontrava aberta. A noite estava quente. Apagou a lanterna para poupar as
pilhas. A sala ficou mergulhada numa quase escuridão porque a janela dava
para o terreno descampado e os poucos candeeiros de iluminação pública,
alinhavam-se ao longo da rua que faceava a fachada principal do edifício. O chefe André saiu dos seus
pensamentos: – E quanto ao fulano que
apanharam? Já há notícias? – Bom, por enquanto, nada.
Mas não há dúvida de que é o nosso homem. Tinha consigo a chave deste
apartamento e, além disso, está nos nossos registos como sujeito capaz de
tudo. Está a ser interrogado com vagar. Deve ter tido alguma desinteligência
de última hora com o correio e o tira-teimas terminou mal. Isso não me
preocupa para já. A questão é que não levava com ele nem uma das peças do
xadrez. – É verdade, as célebres
peças… – o chefe André falava com uma expressão sorridente. Repare, Etelvino:
na verdade, o que nós procuramos não são as peças do xadrez mas sim os
diamantes. Diacho, tê-los-ia engolido, o assassino? Ou o morto, quem sabe? Etelvino ficou pensativo. – Se foi o morto, não há
perigo. Quanto ao outro teremos que fazer-lhe urna radiografia… Bolas, chefe!
Não dá. Se o tipo engoliu as pedras, estamos na mesma. Onde estão as peças do
xadrez? O chefe André concordou: – Tem razão. Essa pergunta
é uma boa resposta. Mas não se fixe muito no problema das peças. De momento a
questão chave, a grande interrogação, é esta: por que diabo foram queimados
os sapatos do infeliz? Abriu os braços,
desanimado. – Vamos até lá fora. Tenho
que beber uma água mineral. Antes da meia-noite
chegaram da sede da polícia duas informações relevantes O interrogatório do detido
dava poucos frutos. O sujeito aguentava firme a versão de que o estojo já se
encontrava vazio quando lhe foi entregue e que, perante essa grave quebra do
contrato, se envolvera em luta com o holandês. E que no tumulto da refrega
lhe apertara a garganta durante mais tempo do que o estritamente necessário.
Quanto à questão dos sapatos, sustentava descaradamente que não sabia de
nada. O laboratório enviava um
relatório sucinto: a análise dos resíduos resultantes da combustão mostrava
que havia sido queimado um jornal português do dia, bem como dois sapatos de
cabedal de “design tradicional”. Não havia sinais de qualquer outra
substância. E vinha uma frase sublinhada: não tinham sido encontrados restos
ou vestígios de combustão de nenhuma das fibras com que normalmente são
confeccionados os atacadores dos sapatos. – Valha-me Nossa Senhora da
Saúde – murmurou o chefe André ao tomar conhecimento dos documentos –, era só
isso o que me faltava… É claro que, antes que a
madrugada despontasse no horizonte, já o chefe André tinha passado a limpo o
relatório onde esclarecia todo este alucinante mistério. De qualquer modo, aqui
ficam as perguntas que tanto afligiram o adjunto Etelvino: 1 – Onde manda a lógica que
se procurem as peças do xadrez? 2 – Porque foram queimados
os sapatos do correio? 3 – Porque foram
previamente retirados os atacadores dos sapatos? |
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© DANIEL FALCÃO |
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